Os fins justificam os meios e Liberdade antes que tardia – MOV Dia 2

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People Disappear All the Time

Mais diverso e esteticizado que o programa internacional do primeiro dia, Os fins justificam os meios é aquela seleção mais leve que os festivais por algum motivo ou motivo nenhum costumam ter, com filmes mais curtos e com maior apelo visual e narrativo. Se alguns são ruins (e a maioria aqui não é), costumam passar despercebidos antes de incomodar, muito deles são simplesmente agradáveis, como piadas estentidas ao formato de curta-metragem.

O primeiro e mais longo filme do programa, no entanto, foi o único que realmente me tocou. People Disappear All the Time (Cyril Nehmé, Líbano) é a história de um rapaz com a função de digitalizar fotos de pessoas desaparecidas durante a guerra. Nehmé constrói dois universos para o filme, um interno ao prédio em que ele trabalha, responsável por manter essas pessoas ou ao menos a imagem delas na memória oficial de uma sociedade; e um externo, em que a memória não é prioridade e, como acontece atualmente em várias cidades do mundo, o passado é visto como um passo a ser superado. Cada um desses lugares recebe da câmera um tratamento diferente. A memória de dentro do prédio é vista de uma perspectiva ordenada e plana que recentemente tem sido muito associada a Wes Anderson. Alguns geniais movimentos de câmeras dentro desse lugar fantasiam cientificamente o olhar sobre a ordem, algo como aqueles planos de Fassbinder que pareciam atravessar dimensões. O lado de fora, enquanto isso, é visto quase amadoramente. Suas cores são desbotadas, e os enquadramentos são frios, não encontrando no que vê qualquer beleza.

Pandas (Matús Vizár, República Tcheca) tem o frescor do êxito criativo e de originalidade. Ainda acho, principalmente quando lembro da cartela com a frase de Darwin, que o filme parece inteligentemente negar, que há algo ali pretendendo ser dito. Mas ele não se contém pela compreensão de uma mensagem, soltando todos os absurdos da mente criativa do roteiro e dos êxitos surrealistas do desenho.

Eat (Moritz Krämer, Alemanha), Meatball (Attila Hartung) e Voodoo Moustache(Louis Paxton, Reino Unido) são o tipo de curta-metragem cheio de firulas estéticas para engrandecer uma narrativa fraca e com muito pouco a se dizer. Ontem eu falei que Fragmentos de uma Cronologia Inerte partia de uma proposta estética, como outros filmes frívolos (no melhor sentido da palavra) e políticos que têm aparecido pelo Recife. Eat, Meatball e Voodoo não são propostas estéticas, são propostas narrativas. E aí acho que se aproximam mais do cinema pernambucano nos fetichismos visuais de Loja dos Répteis (Pedro Severien, 2014) e História Natural (Júlio Cavani, 2014), mas estes ao menos encontram um propósito, mesmo que pareça uma fraca desculpa, para a narrativa estetizada que a torna mais interessante.

O programa nacional desse segundo dia guarda uma lamentável contradição. Liberdade ainda que tardia reúne alguns filmes bem datados, presos a repetições do cinema de curta-metragem brasileiro. O fraco Santa Rosa (João Paulo Palitot, PB) ainda se arrisca com bons insights em um filme de narrativa clássica, encantei-me pelo último plano. Mas garanto que se você frequenta pelo menos dois festivais de cinema com curtas-metragens no Brasil por ano já deve ter visto algo como No Seu Giro, Corpo Leve (Camila Camila, Letícia Ribeiro e Ohana Sousa, RB) uma centena de vezes. Este não acrescenta nada aos seus vários semelhantes. Quer nos convencer da liberdade de um personagem real através de uma montagem alusiva esperta. O que poderia existir de liberdade ali foi preso egoisticamente pelo filme.

Novamente, o último filme da noite é o meu preferido. No caso de Aquenda Nela (Bárbara Cabeça, CE), era o único realmente livre do programa — Power Charques (Fernanda Xavier, Rafaela Cavalcanti e Sara Régia, PE) não vai além de sugerir seu conceito fácil e popular e Ocaso (Bruno Roger, RJ) sofre a infelicidade de estar muito próximo tematicamente a Nova Dubai (Gustavo Vinagre, CE), tudo que é interessante no primeiro parece brincadeira de criança perto do segundo.

Aquenda Nela busca o passado de uma figura-personagem do cinema nordestino contemporâneo. Diego Salvador, que em Tatuagem (Hilton Lacerda, 2013) e O Completo Estranho (Leonardo Mouramateus) assume a persona característica, bela e forte de Yasmin, aqui é um rapaz tímido interessado na estética feminina do corpo e movimento. O ator está espetacular, irreconhecível como um pré-personagem. Em tempos que ser drag virou uma competição de “quem é melhor?” na televisão — bela maneira de se capitalizar e industrializar a estética e política marginal —, Bárbara Cabeça nos oferece vislumbres de um universo solidário de busca identitária. Grande filme.


Aquenda Nela