Procura-se Gatsby Desesperadamente, por Cecília Shamá

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Leonardo DiCaprio em O Grande Gatsby

Roubaram-me O Grande Gatsby (1925) duas vezes: a primeira quando emprestei o livro a um conhecido que nunca o devolveu (ironicamente fazendo com que minha coleção de F. Scott Fitzgerald seja desfalcada de seu maior sucesso comercial) e a segunda quando assisti ao filme de Baz Luhrmann. Aliás, eu já havia desistido de assistir ao exercício cinematográfico de histrionismo visual e narrativo do filme, quando me dei conta de que eu precisava checar pelo menos o figurino e a direção de arte do mesmo, pelo menos isso.

Foi quando comecei minha maratona psicológica e física para aguentar ao filme. Metáforas são importantes por serem metáforas. Quando se entrega tudo ao plano simplista da conjugação da metáfora, usando o aparato da imagem sem significado, a narrativa de um filme chega a um abismo de distanciamento insuportável para mim. A luz que Gatsby procura é a procura pelo status social. Não pelo próximo Oscar de Figurino e direção de Arte. E se de fato, “não se pode repetir o passado”, pelo menos, fica o menos.

Por que falar de um livro que trata da busca do jeitinho americano de viver, do materialismo, da música envolvente e das melindrosas da década de 1920 quando você vai e retira cada pedaço de inspiração de um autor e só coloca os diamantes na imagem? Por sinal, referências explícitas ao corpo de trabalho de F. Scott Fitzgerald não faltam em todo o filme. Do nada, Nick fala o milionário John T Unger, oriundo de uma família renomada de Hades...” e sequer acaba a frase. Essa é uma inclusão da primeira linha de O Diamante do Tamanho do Ritz (1922), um conto sobre o fascínio do dinheiro, a ilusão do primeiro amor e a escravidão dos operários que dilapidam o mais lustroso dos diamantes do mundo. 

E como versar sobre uma época de proibição do álcool, charmosa, ilícita, como a decadente América à beira de sua Grande Depressão de 1929, se, de fato, nem a música segue o roteiro de um filme de época, pelo menos da época que se propõe? Mais uma ironia: Suave é a noite(escrito em 1934) ganhou uma adaptação para o cinema em 1962 e uma indicação ao Oscar de Melhor Canção Original, coisa da qual o novo Gatsby se esforça para se afastar. Se, como original, a música ambiente de O Grande Gatsby se referir à releitura descambada de Jay Z e companhia, tal acuidade poderia equivaler às músicas escolhidas pelas lojas de departamento do país, tocadas quando estamos em seus provadores. Com o mesmo sentimentalismo, diga-se.

Nicole Kidman em Moulin Rouge

A luz que Gatsby enxerga ao longe, onde Daisy reluz como ouro e é feita de ouro, fica piscando na tela o tempo inteiro. As festas que dá, a casa imponente de Gatsby, reduz até o Moulin Rouge a um prostíbulo de simplicidade. Esta que poderia ser anacrônica citar em uma resenha sobre o Jay Gatsby turbinado do agora, com o Leonardo DiCaprio jogando suas roupas para Daisy, tal qual um montador de vitrines de uma loja chique. Os atores, inclusive, parecem tão alucinados pela marcação de cena que os personagens se tornam bonecos irritantes com sotaque sulista. Se isso era para ser uma crítica à hierarquia social com a qual Scott deparou-se em seu noivado caótico com Zelda, quando jovens do interior dos Estados Unidos, tal como Jay e Daisy ao serem impedidos cinco anos atrás de irem em frente com seu compromisso, não passa de estilo no filme. Coquetismo sem charme nenhum. Estilo, moda, glamour. Mais do mesmo.

Parecia que tal como Nick Carraway (por sinal, um dos narradores mais sem importância da literatura, afinal, ele apenas “se deixa levar” pelos outros, tal como diz seu nome, tal como diz na primeira página do romance sobre suas relações interpessoais, tal como reage ao desfecho da narrativa, ao contrário do Nick de Lurhmann, que tudo vê, tudo sente, tudo grita) casa como um pastiche de mal gosto do diretor. Sem propósito, Nick narra as desventuras do adultério do marido de sua prima como comparativo à sua primeira ressaca na Era do Jazz. De sua função de zumbi social no livro é transmutado em pobre rapaz desencantado e enlouquecido pelas extravagâncias dos seus antigos amigos.

Em Suave é a noite Fitzgerald fala sobre a loucura, anos depois da publicação de O Grande Gatsby, e todos merecíamos saber o quanto Baz conhecia Scott, muito mais do que você, sim você, que viu o filme. O tio Baz é tão mais inteligente do que você! Ele leu todos os livros de Scott e por isso mesmo ele vai aproveitar cada plano sequência para mostrar tudo a você, a começar pela construção da loucura de Nick, levando-o a refletir e escrever sobre o que presenciou. Debatendo sobre a psicanálise como forma de epifania agradável do personagem.


E é nessa hora que vão me dizer:

—  Mas essa é a proposta do filme. Eu aceitei ela. E você não.
E eu vou retrucar:

— Não seria essa a proposta de todos os filmes? Adaptar para sobreviver? Mas adaptar de forma coesa?

 Se Luhrmann desejava repetir todos os planos de seus filmes, não deveria se dar ao trabalho de chamá-lo pelo nome da obra do escritor norte-americano. Deveria sentar com seus hóspedes e exibi-los em seu bacanal privado. Seria mais honesto assim. Que fizesse sua masturbação intelectual entre suas quatro paredes.

E eu que reclamava da adaptação estoica de Coppola, realizada em 1974 para O Grande Gatsby. E eu que julguei O último magnata(1976) de Elia Kazan. E eu que pensei que literatura e cinema deveriam ser simbiose e não separação entre Igreja e Estado. E eu que...

Scott Fitzgerald

“Seu talento era tão espontâneo como o desenho que o pó faz nas asas de uma borboleta. Houve uma época em que ele tinha tanta consciência disso quanto a borboleta, não ligando para o fato de que seu talento podia apagar-se ou desaparecer de todo. Mais tarde começou a preocupar-se com as asas feridas e sua estrutura; aprendeu a refletir, mas já não conseguia voar porque o amor ao voo o abandonara. Restava-lhe apenas a lembrança dos dias em que voar fora um ato natural” Ernest Hemingway, Paris é uma festa.

Michelle Williams em O Grande Gatsby