Pulp Fiction, por Janet Maslin (1994)

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Este texto foi escrito por Janet Maslin, publicado no New York Times no dia 23 de setembro de 1994 e traduzido por mim


Uma Thurman em Pulp Fiction

Desde que Pulp Fiction (Quentin Tarantino, 1994) se tornou sensação no Festival de Cannes deste ano, onde ganhou o grande prêmio (a Palma de Ouro) tem sido embalado nas mais selvagens hipérboles. Na verdade, deflagrou um ânimo condenado a parecer suspeito de longe. Deve ser difícil acreditar que Tarantino, um talento vastamente auto-ditada e pouco testado que passou seus anos de formação criativa trabalhando em uma vídeo-locadora, tenha aparecido com um trabalho de tanta profundidade, inteligência e incendiante originalidade que o coloca nas primeiras fileiras dos cineastas americanos.

Mas a partir de hoje à noite a prova estará nas telas.

E que prova esta é: uma triunfante e genialmente estonteante jornada pelo hedonismo que brota inteiramente da imaginação de Tarantino, uma paisagem de perigo, choque, hilaridade e vibrante cor. Nada é previsível ou familiar dentro desse irresistível mundo bizarro. Você não meramente entra no cinema para ver Pulp Fiction, você desce a toca do coelho.

Essa jornada, que progride com uma temporalidade surpreendente por Los Angeles e redondezas, acaba sendo tremendamente divertida. Mas é fundamentalmente muito mais do que um passeio alegre. Formando um círculo completo ao final de — justas e ponderadas — duas horas e meia, Pulp Fiction deixa seu público com uma deslumbrante visão de destino, escolha e possibilidade espiritual. O filme não precisou se tornar explicitamente religioso para ressoar quando um personagem escapa da morte em uma motocicleta na qual se lê “Grace”.

Notadamente, tudo isso se passa em um ambiente de criminosos mesquinhos jorrando obscenidades, os bandidos de vida curta que Tarantino traz às telas com animado gosto. Cães de Aluguel, o único outro filme que ele dirigiu e escreveu (ele assina o roteiro de Amor à Queima Roupa e é creditado no argumento de Assassinos por Natureza), oferece apenas um vislumbre do grande estilo com o qual ele agora evoca os seus marginais. Ele também indica alguns dos truques de cronologia que vão moldar o muito mais ambicioso Pulp Fiction.

Cães de Aluguel alcançou merecida notoriedade por sua violência, especialmente em uma hábil mas agonizante sequência envolvendo a lúdica tortura de um policial. No menos sangrento Pulp Fiction, em que as cenas perturbadoras são temperadas por um humor feroz e impossível, fica especialmente claro que há método para os momentos de cachorro louco¹ de Tarantino. Ele se utiliza de comportamentos extremos para manipular a audiência de maneira significativa.

Surpreendentemente sensível com personagens que cometem assassinato à sangue frio, Pulp Fiction usa o valor de choque desse contraste para manter quem lhe assiste constantemente desequilibrado. Deter o julgamento moral de seu público facilita para Tarantino sustentar o tom alarmante do filme. Quando ele compensa eventos violentos com inesperadas gargalhadas, o contraste dos ânimos se torna libertador, chamando atenção para as verdadeiras escolhas feitas pelos personagens. Longe de amorais ou improvisadas, essas táticas forçam o espectador a abandonar todos os seus preconceitos enquanto estiverem sob o efeito do filme.

Considere a única cena de Christopher Walken, em que ele interpreta um oficial militar e entrega um longo monólogo explicando como ele veio a se deparar com um relógio de ouro, que ele está agora apresentando a um garotinho chamado Butch. O discurso se constrói provocativamente para uma punch line² ultrajante, depois do qual Tarantino sabe exatamente quando abrir mão, seguindo em frente para a história do Butch adulto (Bruce Willis). Qualquer um que se surpreender por ter rido da nojenta anedota do relógio vai se surpreender mais ainda em admirar o lado nobre do episódio sadomasoquista em que Butch logo se envolve.

A história de Butch é a segunda de três vinhetas apresentadas aqui, apesar de que a ordem em que as fábulas aparecem na tela se mostra não ser a ordem em que de fato ocorrem. Além disso, o filme é moldado por cenas de abertura e fechamento que acabam se encaixando. Longe de confundir sua audiência, Tarantino eventualmente deixa claro o esquema temporal do filme, ligando episódios com diálogos que podem soar casuais, mas que se apegam firmemente à memória. Quando um homem chamado Pumpkin (Tim Roth) bruscamente se refere à garçonete como “Garçom!” não é facilmente esquecido.

Christopher Walken em Pulp Fiction

Presos uns aos outros em situações absurdas, conversando trivialidades que de repente ganham foco, os personagens de Tarantino falam uma linguagem característica. A essência das histórias pode ser intencionalmente ordinária, como o título indica, mas Godot³ está nos detalhes. Então o primeiro episódio, “Vincent Vega e a esposa de Marsellus Wallace”, encontra Vincent (John Travolta) e seu parceiro, Jules (Samuel L. Jackson), debatendo de maneira vazia e hilária enquanto se preparam para embarcar em uma missão profissional. A profissão deles é matar. Jules, facilmente o mais pensativo dos dois (não há competição), gosta de recitar a profecia de Ezekiel contra os filisteus para assustar quem está prestes a morrer.

Como todos os personagens de Tarantino, esses dois são mais simpáticos do que têm qualquer direito de ser. Eles também estão preocupados. No caso de Vincent, por uma boa razão: ele foi recrutado para passear com Mia Wallace (Uma Thurman) enquanto seu marido (Ving Rhames), o impassível rei do crime pra quem ele e Jules trabalham, está viajando. Há boatos de que Marsellus jogou um homem da janela de um quarto andar por massagear os pés de Mia.

O encontro cria uma noite estranha, com um contratempo envolvendo drogas e uma competição de dança em um restaurante chamado Jack Rabbit Slim’s. Esse set, espetacularmente fotografado por Andrzej Sekula com uma caracterização dos anos 1950 sonhada por Tarantino, é tão chamativo e alucinatório que deixa o pobre Vincent tonto. Quando ele finalmente conta para Mia o que soube da massagem no pé, Tarantino prova que pode escrever mulheres cínicas e inteligentes em pé de igualdade com seus homens coloridos. “Quando vocês, patifes, se juntam, são piores que um clube de costura”, diz a maliciosa Mia, com olhar reluzente.

O papel central de John Travolta, em que ele atua (e até dança) com um charme imenso, há muito subestimado, é uma medida do porquê o roteiro de Tarantino é o sonho de qualquer ator. Travolta, Jackson e Willis podem sugerir algo já conhecido, mas nenhum deles teve a oportunidade que este material oferece. Jackson, nunca melhor, realça vibrante inteligência e um olhar vingativo que fura a tela. Ele também engaja em uma formidável parceria cômica com Travolta. Willis, cujo episódio cede levemente quando lida com Fabienne (Maria de Medeiros), sua namorada, exibe uma forte e ágil energia quando colocado nas mais incompreensíveis situações.

A terceira história, “The Bonnie Situation”, tem Harvey Keitel interpretando um cortês expert em saneamento chamado Wolf, a sua especialidade é particularmente repulsiva. “Agora: você tem um cadáver no carro com exceção da cabeça na garagem”, diz Wolf. “Me leve até ele.” Para que não pareça muito insensível, leve em consideração detalhes como o fato de Wolf ser visto pela primeira vez em black-tie, no que parece uma elegante festa matutina. E que Tarantino aparece usando traje de banho e oferecendo café para todo mundo. Pequenos gracejos não contam muito aqui, mas pelo menos são mencionados, como quando Wolf dá ordens a Vincent para limpar tudo depois do cadáver. “Um por favor seria bom”, reclama Vincent.

Pulp Fiction é o trabalho de um cineasta cuja ávida compreensão de cultura pop se manifesta de novas e espetaculares formas. Da música de surfista na trilha sonora às alusões ao film noir, televisão, filmes B e Jean-Luc Godard (observe a peruca de Thurman), Pulp Fiction cheira a segunda-mão. Ainda assim as referências são exuberantemente divertidas, nunca pretensiosas. Apesar de seu fascínio pelo familiar, o filme em si é absolutamente novo.

A audácia de Tarantino também se estende a profanas conversas frequentemente apimentadas com epítetos e insultos raciais desarmados pelo fato de o filme ser completa e amigavelmente integrado. Quando se trata da linguagem, Pulp Fiction usa palavras fortes com total confiança, ao ponto de que nada é dito de forma indeterminada. Elogios, no calão deste filme, soariam bastante aguados se sequer publicáveis. Mas “Bravo!” vai ter que servir.

John Travolta e Samuel L. Jackson em Pulp Fiction

Notas do tradutor:
¹ Mad-dog, no original, é uma expressão que se refere ao olhar nervoso do cachorro louco momentos antes de atacar. Não encontrei termo equivalente.
² Termo geralmente usado para se referir à última frase de uma piada, que revela o motivo para riso.
³ Esperando Godot, peça de Samuel Beckett em que dois homens conversam trivialidades enquanto esperam alguém que nunca chega.