"Whiplash – em busca da perfeição", por Cecília Shamá

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10389958_1538723463072259_7966338420622420843_nQuatro paredes, som de bateria ao longe, escuridão. É preciso escutar antes de ver. Whiplash (2014) começa da forma que termina: no escuro. Ao som do jazz. Ali está o momento de criação daqueles que se submetem aos desejos de seus dons: a solidão. Essa sequência se repete na cena final: você precisa criar para além dessas quatro paredes, sejam elas mentais, acadêmicas, familiares, ou você mesmo. O mundo é um quarto fechado onde você precisa colocar sua criação e se sujeitar à ela. Se você toca, ou escreve, ou compõe, ou pinta, seja o que for, o mais recorrente do processo criativo é ouvir a expressão: “use sua revolta interna na sua arte e você será compreendido”. Esse momento de dor, de perda, de solidão, é o momento exato para sua criação. Então entramos num círculo vicioso, onde as pessoas parecem nos alienar, nos distanciar da nossa forma de expressão, e assim, nos excluímos do mundo. A ironia com a criação artística é que sem o fator humano não fazemos nada mais do que repetir ao invés de criar. Andrew (Miles Teller) é tão obcecado quanto seu professor. Ele assume aquela monstruosidade de nossos instintos primários de sermos o melhor entre os melhores que praticam o mesmo que nós: a competição, o questionamento pessoal, a cobrança da sociedade pelas carreiras e pela folha de pagamento, nossa resposta rápida de que estamos indo de encontro ao passado. O aluno que precisa provar que é tão bom quanto a partitura. É nesse ponto que Whiplash mais toca: você se deixa sangrar, chorar, desmoronar e ser julgado pelo que cria. Quem você seria sem seu dom? Como você aguenta sua vulgaridade entre os outros humanos quando deseja fazer algo especial? E como viver sem o que você ama, se é isso que lhe afeta mais? Se é ser julgado, criticado, desgastado, desacreditado, parte de um chamado maior do que nossa preservação mental e física? Afinal, é isso que nos faz especiais. “Estamos aqui por alguma razão”. É onde entra a figura do professor sórdido interpretado por J.K Simmons. Fletcher é uma forma de espelho. Um ser que vê algo de especial na gente. Sabe quando aquela pessoa que você admira diz que você tem um dom? Para logo em seguida fazer um comentário sarcástico e te dizer que você foi pífio? É onde reside a força motora do instinto animal do filme e do homem: nunca chegará a aprovação que queremos. Nossa. E como queremos ela. Fletcher rege a orquestra como quem comanda um pelotão militar, ele não deseja de fato achar a música em seus músicos, ele deseja um desempenho impecavelmente mecânico de seus alunos, que à um sinal negativo seu estará acabado. Assim como seu dom. Assim como suas escolhas e privações. Fletcher é aquela espécie de instituição que odiamos: ele sempre vai estar lá, validando, apontando, gritando que ainda assim somos apenas crianças desejando a aprovação de nossos pais. E ele está longe de nos segurar quando tudo cair. Me lembro do instante em que eu disse que não queria mais escrever e do instante em que eu parei de escrever há cerca de um ano. Foi quando um professor me reprovou por plágio, plágio este em meu próprio texto, o qual provei. E daí? Sente e aproveite sua prova final, ele me disse. E assim eu tirei zero e reprovei na cadeira. Me lembro da humilhação que foi ver que o que eu mais amo, escrever, era digno de nada. Então eu fiquei tão desacreditada para mim mesma que fiz o que considero meu ponto de maior dor: eu apaguei e rasguei tudo que escrevi do mais antigo até os dias atuais. Textos de anos, postagens em blogs, os quais deletei. E me lembro como foi caminhar no mesmo corredor, sabendo que eu não iria mais escrever. Foi aquele instante que me senti mais inútil do que nunca. Não foi o instante do zero. Foram as semanas, os meses sem conseguir produzir nada textualmente. Sem característica nenhuma. Eu me senti mais vazia do que nunca. Porque para mim no fundo o que contava não era ser lida, era escrever. E durante quase um ano, eu não produzi nenhuma linha. Até que certo dia a necessidade começou a voltar. Maior do que mim. E espero que Damien Chanzelle mostre aos outros Andrews que como eu quase obliteraram seu dom: nunca perca a necessidade de produzir. Perca a necessidade de ser ouvido. Perca a necessidade de ser o melhor. Crie do seu jeito. Não delimite o mundo entre você, seus iguais e o melhor. Não delimite o mundo ao critério dos melhores. Delimite seu mundo, ao seu critério do que pode oferecer como melhor naquele momento. Da forma como for. A necessidade absoluta de forçar o limite pessoal depende do aluno que precisa se formar. Que precisamos nos graduar dos nossos pais, dos nossos antigos valores, da valoração das pessoas que admiramos. Precisamos querer ser menos, e somente ser. A música vibrante de Whiplash está na necessidade dela continuar sem fim. A tocar do nosso jeito. A ser um processo feio, desgastante, desequilibrado, como o jazz. A bateria que faz o barulho que precisamos fazer para sermos ouvidos. Para paramos nossas mentes de pensar naquele momento em que criamos. Whiplash não é a partitura de mesmo nome. A direção de Damien Chanzelle nos mostra que para além do papel, estão o suor, o sangue, as lágrimas, as frustrações, a música. Para além do filme, das interpretações viscerais, a música. Para além das notas altas, da execução impecável, a música. Para além do músico que corre e enfeia os momentos musicais cinematográficos retratados. A música. Para além da imagem. A música. Para além do diretor, o filme. A música. *Cecília Shamá é estudante de Cinema da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)