Por que saímos às ruas?

Passada uma semana do segundo turno da eleição de 2014 um tema parece dominar as conversas: por que saímos às ruas no início do inverno de 2013? Os radicais de direita dirão que não foi para reeleger Dilma Rousseff. A maioria dos brasileiros dirá que não foi para eleger Aécio Neves. Os cariocas dirão que não foi para que Sergio Cabral fizesse seu sucessor e os paulistas dirão que não era para reeleger Geraldo Alckmin. Então saímos às ruas para que mesmo?

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Passada uma semana do segundo turno da eleição de 2014 um tema parece dominar as conversas: por que saímos às ruas no início do inverno de 2013? Os radicais de direita dirão que não foi para reeleger Dilma Rousseff. A maioria dos brasileiros dirá que não foi para eleger Aécio Neves. Os cariocas dirão que não foi para que Sergio Cabral fizesse seu sucessor e os paulistas dirão que não era para reeleger Geraldo Alckmin. Então saímos às ruas para que mesmo?

Gastei quase o ano todo buscando respostas na biblioteca, um lugar mágico onde a sabedoria acumulada está acessível sem filtros algorítmicos da internet, este espelho mágico cínico que só responde aquilo que eu já sei. E o que eu desconfiava mas ainda não sabia era que o Brasil urbano tem uma longa tradição de protestos de rua. Saímos às ruas em 1879, 1904, 1909, 1922, 1930, 1935, 1947, 1956, 1963, 1978, 1984, 1991 e muitas, muitas outras vezes. O mito do brasileiro despolitizado e acomodado, difundido pela elite governante, não se sustenta.

Importante então é ver o que une tantas revoltas e tantos protestos, do tenentismo aos operários do ABC, da revolta da vacina no Rio ao quebra-bondes de Salvador. Lendo o máximo possível sobre todas estas revoltas percebo que o brasileiro sai às ruas quando algo ameaça os acordos sobre os quais equilibra a sua rotina. Em 1904 a prefeitura do Rio de Janeiro declarou guerra aos moradores dos cortiços sem nenhuma previsão de relocação para estas 3mil pessoas, exceto o cemitério para algumas dezenas. Em meio a uma disputa entre Light e os Guinle, a população de São Paulo ficou revoltada com o monopólio e tomou as ruas em 1909. Em 1930 foi a vez dos Soteropolitanos quebrarem dois terços da frota de bondes da cidade em protesto contra aumentos abusivos nos preços. Estas revoltas ligadas a questões de mobilidade trazem luz a um problema secular das cidades brasileiras: a dramática distância entre as oportunidades de moradia e as oportunidades de trabalho. Excludente por definição, a cidade brasileira se equilibra em um tripé duplo invertido: de um lado propriedade da terra, alguma infraestrutura e segurança pela exclusão; do outro lado posse sem propriedade, nenhuma infraestrutura e violência pela ausência do Estado. Ligando as duas pontas sempre houve um transporte precário.

Interessante perceber que os brasileiros saíram à rua em massa toda vez que alguma coluna deste tripé duplo foi ameaçada pelas transformações em curso. Na revolta da vacina foi a posse (dos cortiços e barracos) sem propriedade que levou as pessoas a se revoltarem contra a expulsão sumária (sem indenização dado que não tinham registro efetivo dos imóveis) somada à presença repressora do Estado “vacinador”. Outras tantas vezes foi a precariedade do sistema de transportes que levou as pessoas aos protestos. E algumas vezes foi a classe média quem tomou as ruas diante da ameaça de perda de algumas das suas exclusividades. Lembramos muito as defesas da família e da religião nas marchas de 1964 e nos esquecemos da defesa da propriedade, pilar fundamental deste tripé do lado mais rico.

Então, por que saímos às ruas em 2013 mesmo? Um ano e uma eleição depois é razoável perceber que as transformações induzidas pelos 12 anos de governo Lula/Dilma certamente fizeram balançar este tripé. Pelo lado dos mais ricos o aumento consistente dos salários ameaça a rotina familiar pela dificuldade de pagar pelo trabalho doméstico, antes tão barato. Uma vez que o machismo reinante impede metade da população de lavar um copo ou pôr uma pizza no forno, trata-se de uma transformação significativa e ainda pouco estudada. Ao mesmo tempo, a exclusão que antes funcionava simplesmente pela distância também ficou mais cara, basta ver o discurso preconceituoso a respeito dos novos usuários de restaurantes, shopping centers e aeroportos.

Pelo lado dos mais pobres o mesmo crescimento com distribuição de renda que encheu a geladeira de comida e a sala de eletrônicos criou uma inflação imobiliária que forçou o proletariado urbano a se mudar para mais longe. Isto com as ruas comportando o dobro de carros, mas o mesmo número de ônibus e metrô significa o triplo de tempo gasto no deslocamento entre a casa e o trabalho. Em resumo, a pluralidade de causas vistas nos protestos de 2013 tem suas raízes na diversidade das transformações socioeconômicas das últimas décadas. Some-se a isto o fato de que os governos Lula e Dilma, responsáveis por significativas mudanças na direção das políticas públicas não mudaram a forma de fazer política. O grito anticorrupção ganhou força exatamente por percebermos que o governo do PT operava com os mesmos meios, apesar dos fins serem distintos.

No calor dos protestos escrevi que nós, à esquerda, tínhamos três grandes lacunas de propostas para responder ao grito das ruas: ambientalismo, segurança e melhoria dos espaços públicos e da mobilidade urbana. Isto porque acredito que tanto a corrupção quanto a radicalização midiática (resultado da fidelização como estratégia de sobrevivência econômica) só podem ser resolvidas com um judiciário mais ágil e menos formalista.

Voltando às três grandes pautas: receio que a questão da segurança pública esteja totalmente dominada pelo discurso violento da bancada da bala e que teremos muita dificuldade em propor qualquer alternativa. Restam a questão ambiental e a questão urbana.

Se o ambientalismo foi originalmente a bandeira de Marina Silva, sua virada conservadora abriu mão desta questão, que continua flutuando no éter da política nacional. O primeiro que pegar é dono (vejam a oportunidade perdida pelo PSDB aqui). E no que tange a questão urbana, a esquerda finalmente tem na administração de Fernando Haddad em São Paulo uma proposta tão forte quanto foram os orçamentos participativos nos anos 90. Juntas, a questão urbana e a questão ambiental nos trazem a possibilidade de transformar o debate e resgatar uma agenda propositiva que tanta falta fez nos últimos meses. Lembro ainda que na periferia das metrópoles brasileiras a vulnerabilidade social e a vulnerabilidade ambiental estão sempre sobrepostas.

Espero então que o segundo governo Dilma entenda que o desafio da mobilidade e da infraestrutura não pode escolher entre uma das duas vulnerabilidades, precisa atacar ao mesmo tempo as duas. Foi por isso que os brasileiros saíram às ruas em 2013, e vão sair de novo assim que for necessário.

Foto: Tomaz Silva/ABr