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Edivan Guajajara fala à Fórum sobre documentário ‘Somos Guardiões': "Ferramenta de luta"

Cineasta é o primeiro indígena a dirigir um filme na Netflix; com produção de Leonardo DiCaprio, longa retrata sob diferentes aspectos os crimes ambientais e a violência contra os povos indígenas no país

'Somos Guardiões' contou com colaborações internacionais.Créditos: Divulgação
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O Dia Nacional da Luta dos Povos Indígenas foi no último dia 7 e um documentário brasileiro, que retrata de forma nítida e histórica essa resistência vem ganhando notoriedade, não apenas no Brasil, mas em toda América Latina. No dia 28 de janeiro, a produção chegou ao catálogo da Netflix, sendo considerado o primeiro documentário produzido por um diretor indígena a entrar no streaming, após ter seu lançamento no Festival do Rio, em outubro de 2023, com a presença da ministra dos Povos Indígenas Sônia Guajajara e da deputada Célia Xakriabá (PSOL-MG).

Intitulado We Are Guardians, ou Somos Guardiões, o filme é um retrato comovente e necessário dos povos originários que lutam para preservar o que ainda resta da Floresta Amazônica, em um movimento que busca unir forças para frear um problema que se torna cada vez mais crescente para os Guajajara e aos povos indígenas com o passar das décadas. O documentário dirigido pelo diretor indígena brasileiro Edivan Guajajara junto dos produtores Chelsea Greene, Rob Grobman e até o ator Leonardo DiCaprio, tem por objetivo dar visibilidade a esse contexto, explorando a questão indígena e também ambiental sob diversos aspectos, como o sociopolítico, econômico, geográfico, científico, histórico e cultural.

Créditos: Divulgação

Em Somos Guardiões, acompanhamos o guardião da floresta indígena Marçal Guajajara e a ativista Puyr Tembé ao lado de outros guardiões da floresta na batalha pela defesa de seus territórios, enfrentando madeireiros, proprietários de terras sob pressão de invasores e a indústria extrativa ilegal. Em entrevista à Fórum, o diretor do longa, Edivan Guajajara afirma que a ideia de produzir o documentário veio de sua experiência com o audiovisual e da histórica luta pela causa indígena

“Desde sempre eu tive essa curiosidade com o cinema: entender o que acontecia por trás, como eram feitos os roteiros e como tudo era produzido. Foi a partir dali que começou todo o meu entendimento de que eu poderia fazer algo pelo povo, de que eu poderia fazer algo pelos guardiões que estavam em seus territórios, fazendo a defesa e a proteção territorial”, destaca ele. “Eu como indígena filmmaker, tive essa oportunidade de contar essa história e mostrar ao mundo quem eles são e por quê eles fazem esse trabalho tão importante.”

Sob olhar indígena

Além de um mero documentário, Somos Guardiões oferece uma experiência sensorial profundamente marcante. Há uma abordagem singular que humaniza todos os envolvidos: desde o guardião indígena que luta por sua herança cultural, até o madeireiro desesperado e o proprietário de terra que clama por mudanças. O espectador é imerso em um conflito emocional, confrontando não apenas a devastação ambiental, mas também as histórias humanas entrelaçadas com ela.

Já premiado em festivais internacionais e exibido em países e cidades como Londres, Berlim e Nova Iorque, o longa tenta esclarecer a dinâmica da exploração nos territórios da Amazônia, que vai desde os madeireiros até as grandes empresas. Segundo Edivan, em relação aos madeireiros “de alguma forma eles estão ali para tentar sobreviver, mas da forma como estão fazendo a extração ilegal de madeira é extremamente prejuidicial para a natureza”. São madeireiros sem oportunidades na vida e que assim, “vêem uma forma mais fácil de conseguir alguma coisa através do desmatamento”

Ele lembra que a equipe também enfrentou alguns desafios. “O processo de gravação com os madeireiros foi um processo muito delicado, pois também queríamos contar a própria história deles: por que eles fazem o que fazem e por que que eles estão ali. O fato de ir em uma região com madeireiros e estar com uma equipe de gravação em uma região perigosa não é fácil. Nós ficamos por três meses gravando o dia a dia deles”, disse o diretor.

O filme também investigou as raízes políticas do problema, destacando o ex-presidente Jair Bolsonaro como um agente catalisador para o aumento do desmatamento na região entre os anos de  2019 e 2021, período em que o filme foi produzido. De acordo com um estudo realizado pela ONG Greenpeace, os assassinatos de indígenas no Maranhão frequentemente não resultam em punição. Entre 2003 e 2019, foram registrados 57 homicídios, sem qualquer sentença condenatória. Sob o governo de Bolsonaro, a violência aumentou ainda mais. Dados do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) revelam que 23 indígenas foram assassinados nos últimos quatro anos no Maranhão.

Edivan Guajajara

Nascido na Terra Indígena Araribóia, Edivan é fotógrafo, cineasta, diretor e produtor, além disso foi agraciado na categoria de melhor direção de fotografia no primeiro festival de cinema e cultura indígena em Brasília. Segundo ele, dirigir este filme vem de um longo processo, que começou ainda em 2017. “Minha trajetória vem muito antes dessa grande produção. No nosso estado, iniciou um coletivo de jovens comunicadores, onde tive essa oportunidade de estar nesse grupo, formado por 12 indígenas jovens do povo Guajajara e, ao longo desse processo, aprendi a manusear ferramentas, como câmeras, softwares e estudar mais sobre o cinema”, lembra.

Créditos: Edivan Guajajara/Wikimedia Commons

“Pensei que não poderia deixar essa oportunidade passar, e mergulhei de cabeça no projeto do “Somos Guardiões”, porque eu estava ali para contar essa história dos Guardiões da Floresta e pude levar ao mundo a luta diária deles”, declara o filmmaker que foi convidado para ser diretor do longa após acompanhar a equipe de filmagem na época. Além de ingressar no cinema e na fotografia, Edivan ressalta a fundação de um canal de comunicação voltado para os povos indígenas como essencial, que hoje já soma quase 200 mil seguidores nas redes sociais. “Faço parte do coletivo Mídia Indígena, que se tornou referência em produção de notícias e questões indígenas de várias regiões do Brasil.”

As filmagens estavam quase finalizadas quando a pandemia atingiu o Brasil. Por questões de segurança, a equipe do longa retornou aos Estados Unidos. Para garantir a continuidade da produção e evitar que o filme ficasse incompleto, Edivan Guajajara também assumiu a responsabilidade de concluir as filmagens, além de ajudar na tradução.

'Mostrar que é possível'

Guajajara destaca a importância de seu trabalho para as futuras gerações indígenas. ”É uma chance de mostrar o quanto somos capazes de produzir um filme, o quanto somos capazes de produzir música e o quanto somos capazes de fazer belas fotografias. Nós indígenas sempre estivemos aqui, mas nós sempre estivemos atrás das câmeras, sem visibilidade. Hoje como primeiro indígena a ter uma produção de documentário na Netflix, quero dizer que nós quebramos barreiras.”

“Pensando em todo o contexto da minha trajetória no audiovisual, na fotografia e nos movimentos indígenas, percebo hoje o audiovisual como uma ferramenta de luta para as comunidades indígenas, é uma forma de nós reivindicamos os nossos direitos, mostrarmos nossas dores, seja através do cinema, através do audiovisual ou através da comunicação indígena, porque indígena faz filme e indígena faz cinema. Eu tenho certeza que não é só o primeiro filme que estou fazendo.”

Diversidade, alcance e transformação

O documentário carrega algumas singularidades, entre elas a participação do produtor vencedor do Oscar e integrante do elenco da série Succession, Fisher Stevens, que já está trabalhando com Edivan na produção de futuros longas. “Tenho falado e escrito com o Fischer. Virão muitos projetos futuros por aí”, revela o diretor. 

A ativista Puyr Tembé, cuja história é retratada no filme, agora ocupa o cargo de Secretária de Estado dos Povos Indígenas do Pará. Outra curiosidade é que além dos sons naturais da floresta, durante as filmagens foi possível escutar português, inglês e tupi, devido à diversidade da equipe, composta por profissionais originários de diferentes povos e países.

A produção também foi responsável por unir dois cineastas que não se conheciam, como Rob e Chelsea, que empreenderam jornadas à Amazônia em 2019, movidos pelo desejo de investigar os incêndios que se tornaram assunto global. Foi o produtor Gabriel Uchida, do filme The Territory, que recentemente venceu o Grammy, quem os uniu. Mais tarde os dois se tornaram parceiros na produção de Somos Guardiões. Ao todo, a equipe do filme conduziu oito missões com os Guardiões, algumas delas duraram vários dias, envolvendo trabalho árduo, viagens de barco, caminhadas e noites na floresta.