A canção “Menino Mimado”, de Criolo, e a tradução da nossa essência, por Julinho Bittencourt

Qualquer um que não venha deste nicho, o do “menino mimado”, será preso, escorchado, torturado, eliminado sob qualquer pretexto ao sabor das instituições da época em questão

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Qualquer um que não venha deste nicho, o do “menino mimado”, será preso, escorchado, torturado, eliminado sob qualquer pretexto ao sabor das instituições da época em questão Por Julinho Bittencourt O cantor e compositor Criolo transita em uma zona curiosa da nossa música, onde inovação e tradição andam de mãos dadas. O seu último lançamento, “Espiral da Ilusão”, comentado por aqui, é repleto de sambas, que lembram Cartola e Nelson Cavaquinho, ou quase isso. São, de fato, sambas tradicionais. Mas, tanto em sua elaboração harmônica e instrumental, quanto pelas imagens que constrói, Criolo chama para si o seu tempo. E o faz com extrema crueza e propriedade, sobretudo em “Menino Mimado”, uma canção que parece feita sob medida para desvendar o tempo em que vivemos. De maneira rica e cheia de visões, imagens e clarões, todas elas vindas de uma profunda desilusão social, Criolo responsabiliza logo de saída o desafia o contraponto: Não, eu não aceito essa indisciplina Acho que você não me entendeu Meus meninos são o que você teceu Em resistência ao mundo que Deus deu E eu não aceito, não O seu interlocutor imaginário parece vir de outro mundo. A explicação, necessária ou não, diz em poucos versos de onde veio e a que veio o cantor. Não pode admitir a vulgarização e, sobretudo, criminalização de seu meio. Na canção há sempre a peleja entre “os meus meninos” e “o menino mimado”, ou seja, “os seus meninos”. Logo mais adiante, ele parte para o ponto “G”. Bota o dedo na ferida de quem vive sob abstração: Então pare de correr na esteira e vá correr na rua Veja a beleza da vida no ventre da mulher Pois quem não vive em verdade, meu bem, flutua Nas ilusões da mente de um louco qualquer E eu não aceito, não O “não aceitar” é, antes de tudo um paradigma de onde o interlocutor está e onde o cantor faz questão de se situar. Há sempre, em cada uma de suas colocações, um tanto de ingenuidade e até mesmo esperança. A “beleza do ventre da mulher” está em ambos e pode nos redimir, de acordo com o autor. A conclusão, ao final, é fulminante. Sem mais rodeios, diz o que quer. Se coloca de maneira contundente, em contraste com o discurso, por vezes, conciliador. Daí em diante, não há mais literatura e muito menos esperança. Não há mais como “mastigar desilusão” – uma linda imagem –, o mundo urge de atitudes: Eu não quero viver assim, mastigar desilusão Este abismo social requer atenção Foco, força e fé, já falou meu irmão Meninos mimados não podem reger a nação O verso chave da canção “Meninos mimados não podem reger a nação” cai e nos acode feito uma bomba. A sequência fotográfica instantânea de políticos, candidatos e congêneres que nos remete a sua premissa nos provoca, instantaneamente e ao mesmo tempo, desgosto e esperança, melancolia e sentido. Uma canção, um samba aparentemente simples, nos lembra de forma ensurdecedora que um país sério não pode, não deve e tem que se lançar de todas as formas possíveis a evitar se submeter mais uma vez e sempre a esses tipos vindos da oligarquia. Fantasmas rosados e bem vividos nos assombram e sempre assombraram desde os monarcas portugueses até chegarmos aos Collors, Aécios, Hucks e Dallagnols. Qualquer um que não venha deste nicho, o do “menino mimado”, será preso, escorchado, torturado, eliminado sob qualquer pretexto ao sabor das instituições da época em questão. Criolo nos remete, com a sua canção simples e repleta de novidades, ao óbvio e ululante. Foto: Divulgação