Olhar de Cinema: Destaques do Festival Curitibano online

Filippo Pitanga dá dicas do Festival de Cinema de Curitiba que oferece um amplo cardápio totalmente online de produções brasileiras que ganharam o mundo antes de serem exibidas no país

Cena de Los Conductos (Reprodução)
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Desde fevereiro esta coluna vem anunciando alguns dos filmes brasileiros que mais brilharam no início do ano, inclusive acumulando elogios e prêmios no último Festival de Berlim (leia aqui), e que ainda permaneciam inéditos no circuito de exibição devido ao fechamento dos cinemas com a pandemia. Agora, de 07 a 15 de outubro, começou um dos eventos mais agregadores destas pérolas que circularam internacionalmente antes de voltar para cá ainda inéditas, o Festival Olhar de Cinema de Curitiba, e que está oferecendo um amplo cardápio totalmente online para todo o Brasil, com valores acessíveis de R$ 5,00 por ingresso (seleção completa aqui).

Dentre produções que descentralizam os polos cinematográficos para regiões menos contempladas por editais e financiamento público como do Pará ao Ceará, de Alagoas ao Goiás, daremos algumas dicas para que nossos leitores possam fazer suas próprias programações. Com destaque igualmente para algumas coproduções internacionais, como “Los Conductos” de Camilo Restrepo, filme da Colômbia com o Brasil e a França, ganhador do prêmio GWFF na Mostra Encounters da Berlinale 2020; bem como “Nardjes A.” de Karim Aïnouz, nosso consagrado cineasta que representou o país no último Oscar com “A Vida Invisível”, e que realizou este novo documentário sobre a terra natal de sua família na Argélia, com auxílio da França e Alemanha.

Porém, talvez o melhor pontapé inicial para exemplificar o potencial dessa lista em surpreender a gregos e troianos seja o longa-metragem de ficção “Cabeça de Nêgo” de Déo Cardoso. Cheio de adrenalina e tensões sociais contemporâneas, e que reúne demanda por representatividade com elenco Global (Jessica Ellen da novela “Amor de Mãe”, Val Perré de “Sol Nascente”), este filme estreou ovacionado de pé na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes em janeiro deste ano. Um dos principais acertos do filme é conseguir trazer a estética da contestação numa linguagem entre o pop ultraconectado (stories, lives...) e a experimentação independente.

Logo de plano, para a cinefilia mais atenta, a mera presença do ator Lucas Limeira protagonizando a trama já deveria ser indicativo de invenção de linguagem. Ele primeiro foi revelado pelo curta afrofuturista “Cartuchos de Super Nintendo em Anéis de Saturno” de Leon Reis, que já aproveitava de enquadramentos fechados em sua alta expressividade para realçar seu potencial de refabulação da realidade num jogo de cartas marcadas. Agora, em “Cabeça de Nêgo”, ele interpreta o aluno Saulo Chuvisco que, inspirado por um livro dos Panteras Negras (cujas lições são projetadas a partir de seu imaginário nas paredes da escola), começa por conta própria uma ocupação de secundaristas contra regras injustas e racistas... até culminar numa batalha de ritmo e montagem frenética, digna dos maiores filmes de ação. Simplesmente de tirar o fôlego e muito em consonância com as denúncias atuais da hashtag #vidasnegrasimportam perante a violência policial.

Outro destaque sintonizado no engajamento contra o descaso público, desta vez sobre as queimadas na Amazônia, é “O Reflexo do Lago” de Fernando Segtowick, ainda inédito no Brasil, e que estreia online neste domingo no Olhar de Cinema. Lançado também na Berlinale (aqui e aqui) e depois em Cartagena, esta produção do Pará conseguiu criar arte dentro da denúncia a partir de alguns interessantes dispositivos documentais. A começar pela filmagem em preto e branco inspirada no livro de fotografias de Paula Sampaio, “O Lago do Esquecimento”, realçando os contornos, os volumes e a textura, de maneira a trazer à tona a essência da imagem.

Algo que podemos aludir às fotos P&B de Sebastião Salgado como no Kuwait em chamas, com bombeiros tentando apagar poços de petróleo incendiados pelas tropas de Saddam Hussein em 1991. De tal modo que, quando mostrada uma floresta, montanhas ou um lago, sem as cores, você não estará mais vendo um coletivo de tons, e sim um só corpo da natureza. E isso traz uma elegância no retrato de personagens que são tratados de forma mais visceral no quadro geral, com protagonismo bastante subjetivo (especialmente no baile final), e que vão virar reagentes a partir da inserção do próprio diretor a interagir com o elenco. Talvez empalideça apenas e justamente na parte da denúncia, já que é quase impossível acompanhar os absurdos e negligências acometidos pelo atual governo Bolsonaro e, assim, o filme já nasceria datado se a intenção fosse apenas esta (apesar de fazer uma boa antologia um pouco didática da situação de lá desde Getúlio Vargas, passando por Ernesto Geisel, até chegar no agora).

Por outro lado, um dos filmes mais ousados e, por conseguinte, mais gratificantes para quem se arriscar, é o goiano “Vento Seco” de Daniel Nolasco. Sua provocadora estetização erótica com toques de neon noir talvez tenha sido a única razão para não ter concorrido na competição principal de Berlim junto com “Todos os Mortos” de Caetano Gotardo e Marco Dutra, e sim na Mostra Panorama (saiba mais aqui). Muito bem resolvido plasticamente, e de extrema vanguarda na linguagem conceitual, retira as referências cinematográficas evocadas do lugar comum e as ressignifica em novas leituras não exploradas. Há de exemplo colocar o arquétipo do ‘Clube Silencio’ do filme “Cidade dos Sonhos” de David Lynch numa pegada LGBTQ atualizada, através do transbordamento do eros no pós-pornô como grito emancipatório.

O cineasta Daniel Nolasco metaforiza várias alusões fílmicas do imaginário e subconsciente para falar do que está sendo proibido e censurado no Brasil. Cenas deste momento político que o próprio Presidente da República anda enunciando de maneira tão controvertida. Isto porque, ao criar uma caça às bruxas por expressões como ‘golden shower’, por exemplo, tudo o que Bolsonaro consegue é intensificar a intolerância persecutória e o obscurantismo ao invés de semear o esclarecimento... O filme, portanto, pega várias destas questões e as transporta no subconsciente do protagonista, de modo a que ele possa ver, mas não possa tocar, numa tensão constante entre imaginário e a privação do prazer. E isso transborda num suspense e horror psicológico... Estamos vendo um desejo que é livre dentro do delírio do personagem, mas que, se ele não pode tocar ou consumir em seu tesão, passa a ser também um pesadelo.

O personagem não pode se realizar porque está sendo castrado pelas convenções sociais que dizem que isto não pode acontecer. É até algo irônico e paradoxal, em meio à fábrica onde ele trabalha, rodeado de personagens LGBTQ, e que são todos expostos à maior precarização de trabalho que deveria ser a principal preocupação deles em termos sociais. Contudo, é a castração do direito universal ao amor livre que se torna uma distração substitutiva intencional para que não se mobilizem nas questões laborais. Afinal, caso se unissem, eles seriam uma potência (não só em Goiânia, mas como no resto do país). Os jogos de câmera, de luzes, os enquadramentos, o extracampo e a trilha, é tudo tão rico e transgressor que enuncia o que precisamos dialogar na sociedade para nunca mais aceitar a repressão imposta atualmente.

Também abordando a desobediência civil ante o fascismo, o já citado “Nardjes A.” de Karim Aïnouz, que segue a protagonista argelina homônima do título, é um filme apenas composto por manifestações populares. – O que talvez não nos pareça tão inédito por termos visto obras recentes mais inovadoras tecnicamente neste sentido, como “Escolas em Luta” e “Espero Tua (Re)volta”... No entanto, é até delicado nos debruçarmos sobre a estética das manifestações (algo cada vez mais raro no Brasil), ainda por cima se compararmos a situação da Argélia com nossa ataraxia. Lá, eles conseguiram resultados com certo pacifismo e um “sorriso da resistência” (o filme exemplifica que a população se manifesta com uma revolução do sorriso).

Não que tenham inexistido algumas repressões policiais na Argélia, mas o próprio Karim Aïnouz fala que chegou para filmar apenas depois deste impacto inicial (aqui), e a personagem Nardjes relata que a população conseguiu começar a desviar das zonas de conflito de maneira estratégica... Assim, conseguiram chamar a atenção mundial para que o governo não pudesse ter a alternativa de violência. O filme escolhe não mostrar nenhum traço de repressão, que é algo que qualquer manifestação perpassa. E, não abordar esse tipo de estética (porque a repressão também é uma estética em prol do esclarecimento e identificação), talvez seja um desconforto que não irá atravessar os brasileiros da mesma forma, porque esse caso não existe isolado no mundo.

Além disso, também estreia no Olhar de Cinema a densa e hermética empreitada “Luz nos Trópicos” de Paula Gaitán, outro lançamento brasileiro do início do ano na Berlinale, o qual chega agora ao circuito possibilitado pelo streaming na quarentena. Numa obra de longos 260 minutos, sua proposta perpassa a extrema precisão estética da diretora, com olhar apurado nas artes plásticas (saiba mais aqui e aqui). Porém, infelizmente, não funciona com o mesmo equilíbrio pelas mais de quatro horas de duração. De início eficaz, o tempo dilatado na primeira hora de projeção nos apresenta a busca de Igor (Begê Muniz) por sua ancestralidade Kuikuro (cujo povo originário possui seu próprio tempo de ensinamento das coisas). Logo depois, em mais duas horas de projeção, acompanhamos uma expedição europeia colonizadora do passado, quase a parecer um tableau vivant (quadro vivo), que talvez esvazie e engesse de certa maneira a intenção decolonialista inicial. Até se recupera perto do fim, quando mistura todos os tempos numa babel poliglota, mas pode ser tarde para prender o espectador mais desavisado.

Por fim, retomo “Los Conductos” de Camilo Restrepo que cria analogias visuais distópicas a partir do tempo presente, aproveitando o olhar microscópico sobre instituições do cotidiano, como uma fábrica de camisetas, para criar distorções delirantes que podem existir apenas na cabeça do protagonista. A narrativa é permeada de relatos em off que aludem a uma facção patriarcal paralela ao Estado, igualmente hierarquizante, que pode parecer libertadora, mas pode ser tão aprisionadora quanto. – E isto será traduzido no contraste entre cenas coloridas e outras extremamente escuras, imersas no breu intencional, em meio ao qual o personagem principal emerge de forma pantomímica quase como num teatro. Um interessante devaneio futurista com pegada realista, onde um túnel pode ser uma viagem dimensional à la Adirley Queirós (“Branco Sai, Preto Fica”), e o buraco de um interruptor pode ser uma janela para a iluminação, usando a precariedade criativamente a seu favor.

Resgato aqui também outros filmes já abordados em colunas anteriores, e que irão reprisar no Olhar de Cinema, como “Cavalo” de Rafhael Barbosa e Werner Salles Bagetti (leia aqui), “Fakir” da mestra Helena Ignez (aqui), e o grande ganhador da Mostra Aurora em Tiradentes “Canto dos Ossos” de Jorge Polo e Petrus de Bairros (aqui). E, para quem gosta de se aprofundar na experiência além do filme, com debates exclusivos gravados a partir de lives com curadores e realizadores das obras, clique nesta playlist.