"GRAPHIC NOVEL"

Os quadros inexpressivos de “Sabrina” – Por Cesar Castanha

A falta de características visuais na apresentação dos personagens contribui também para uma austeridade generalizada do texto

A arte de “Sabrina” é eficiente em comunicar os valores e os riscos do mundo que apresenta.Créditos: Reprodução
Escrito en OPINIÃO el

Sabrina Gallo está só em casa e procura por algo. Quadro a quadro, ela olha todos os lugares prováveis: dentro da banheira, no guarda-roupas, até achar o que procurava – seu gato de estimação – embaixo da cama. A casa de Sabrina não é desenhada com detalhes, e seu rosto também não.

A dinâmica entre a personagem e o espaço no desenho radicaliza uma forma bem estabelecida das “tirinhas”, em que cada quadro apresenta uma ação específica até o desfecho. Detalhes expressivos, nesse caso, são até mesmo indesejados porque tirariam a atenção da ação figurativa. “Sabrina”, graphic novel de Nick Drnaso, tem o formato de tirinhas, como as cômicas dos jornais ou as cartelas instrutivas para situações de emergência no avião.

A forma de “Sabrina”, a simplicidade das posturas e a ausência de detalhes diante de uma situação crítica aproxima o romance mais do segundo caso. E as instruções gráficas para uma situação de emergência funcionam como um modelo muito adequado para uma narrativa sobre consequências privadas de uma tragédia que se tornou pública e para um imaginário de apatia que se cria em torno dessa narrativa. Em “Sabrina”, depois do desaparecimento da personagem titular, sua irmã, seu namorado e um amigo de infância do seu namorado lidam com a incerteza, o luto e a exposição.

O acionamento de uma rede de relações familiares e afetivas que se dão a partir do desaparecimento de Sabrina está na base do trabalho narrativo de Drnaso e é o ponto de originalidade mais significativo da obra. Ainda que acompanhemos Sandra, a irmã da personagem, em seu processo de luto em Chicago, o centro do graphic novel está em um espraiamento menos previsto das consequências da tragédia: a incapacidade destrutiva do então namorado de Sabrina de lidar com a perda e o envolvimento improvável de seu amigo de infância, que mora sozinho, longe da ex-esposa e da filha, em outro estado do país.

A falta de características visuais na apresentação dos personagens contribui também para uma austeridade generalizada do texto. Sem detalhes, os personagens parecem sustentar uma desesperadora expressão de falsa neutralidade diante do horror que vivem, e assim a limitação figurativa da arte gráfica incorpora a própria limitação expressiva dos seus personagens, que também parecem habitar um lugar qualquer, sem especificidade: cidades, ruas, casas, lanchonetes e escritórios como outros quaisquer.

Isso funciona para o texto de Drnaso também para acentuar formalmente uma ideia de banalidade da tragédia, que é logo apropriada por conspiradores online que ameaçam a família de Sabrina e os outros personagens que se encontraram dentro do raio do desastre. As dinâmicas das suas vidas comuns levam a uma sensação de horror e angústia diante da própria ideia de seguir em frente, que todos encontram dificuldade de fazer tanto pelas circunstâncias que os lançam adiante em suas rotinas ordinárias quanto pela incapacidade de criarem espaços efetivos de luto, o que é mais presente no arco de Teddy, o namorado de Sabrina, que, desolado, refugia-se na casa de um amigo distante no Colorado.

O quarto ocupado por Teddy numa casa do Colorado sintetiza o aspecto mais desesperador desses espaços como Drnaso nos apresenta. O quarto não é nada: ele não é o quarto de criança, porque filha e pai já não moram juntos, mas também não é um quarto de hóspedes e dificilmente pode ser tido como o quarto de Teddy, porque ele não habita o quarto, apenas permanece nele passivamente, em um tipo de negação da própria existência e, consequentemente, da existência daquele lugar.

Essa negação é o ponto de partida para os dois personagens mais presentes, Teddy e seu amigo Calvin, operativo de uma agência militar no Colorado. De uma amizade que não existia de fato (Calvin menciona não ter notícias de Teddy há anos), surge a única possibilidade que resta aos dois para lidar com o luto. Drnaso não dá seguimento a esse arco promovendo uma aproximação entre os dois, mas sim ressaltando a estranheza do contato, a crise em que aquela situação coloca ambos os personagens para então seguir em frente com eles, promovendo uma despedida quase tão apática quanto o primeiro encontro na obra.

Se o rigor formal de “Sabrina” é determinante para uma inquietação causada em mim durante a leitura, uma dificuldade de aceitar os traços tão pessimistas e rígidos desse mundo ficcional, é também o que faz do graphic novel um experimento muito interessante com a linguagem dos quadrinhos e do que aparece quando essa linguagem é suprimida até uma estrutura básica. A arte de “Sabrina” pode não dar riqueza de expressão aos personagens, mas é muito eficiente em comunicar os valores e os riscos do mundo que apresenta. “Sabrina” foi lançado no Brasil pela editora Veneta.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.