PASSADO E PRESENTE

Bolsonaristas e Falangistas: Historiador fala sobre diferenças e semelhanças

Após o incendiário discurso de Jair Bolsonaro em Maringá (PR), voltam à baila as comparações entre suas milícias armadas e os reacionários espanhóis que tumultuaram o país europeu no início do século XX

Falangistas marcham em cidade do Sul da Espanha (Não há localidade e data definidas).Créditos: Museo de la Guerra Civil
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O discurso incendiário proferido por Jair Bolsonaro numa feira agrícola de Maringá (PR), na tarde de quarta-feira (11), no qual incitou seus já violentos seguidores “a se armarem para resistir”, depois de afirmar que “os resultados das eleições no Brasil não são limpos”, levantou novamente a discussão sobre uma suposta capacidade dessas milícias de desestabilizarem a democracia brasileira e nos conduzirem a um banho de sangue antes, durante e depois do pleito presidencial marcado para outubro.

O primeiro exemplo que vem à cabeça quando falamos sobre grupos que se arregimentam como paramilitares, portando armas, para impor sua lógica fascizante a uma sociedade plural e democrática é das Falanges que atuaram na Espanha no começo do século XX, sob comando do ultraconservador e reacionário José António Primo de Rivera, filho do ditador Miguel Primo de Rivera.

Há muitas semelhanças óbvias entre os falangistas espanhóis de quase um século atrás e o movimento bolsonarista contemporâneo, assim como existem diferenças muito perceptíveis também, a começar pela estética, o que naturalmente tem a ver com o grande espaço temporal que há entre os dois fenômenos. Para falar justamente sobre esses pontos, a reportagem da Fórum foi ouvir o historiador e advogado Marcelo Cardoso da Silva, professor de cursos preparatórios pré-vestibulares há mais de 20 anos e formado na Universidade Estadual Paulista (UNESP).

Fórum – Antes de tudo, o que há fundamentalmente de diferença entre o Brasil de hoje e a Espanha das primeiras décadas do século XX?

Marcelo Cardoso – "Podemos perceber algumas semelhanças, principalmente a disputa entre grupos conservadores e progressistas, no entanto é necessário perceber que são momentos totalmente diferentes, que vão desde a influência direta da religião católica, no caso espanhol, e a própria questão da Crise de 1929, que não foi a primeira, mas foi a mais violenta da História e que deixou marcas profundas e pautou os discursos e ideologias tanto na direita quanto na esquerda no mundo todo."

"Havia também um apoio entre os países com governos de direita que se auxiliavam, mesmo que informalmente, mas agiam fornecendo informações e subsídios para a manutenção dos seus aliados ideológicos, como aconteceu no bombardeio em Guernica, que foi utilizado como campo de teste pela Força Aérea da Alemanha Nazista. No caso do Brasil, percebe-se um receio de outros governos de direita em se vincular, até mesmo na área diplomática, ao governo Bolsonaro."

"Questão que também que não se pode deixar de ser abordada para diferenciar é a tecnologia nos meios de informação. Na Espanha, nas décadas de 20 e 30, havia os jornais controlados pelas aristocracias de direitas e os jornais de esquerdas, que mantinham uma certa clareza de discurso, tanto de onde vinham e para onde se dirigiam. No Brasil de hoje, as redes sociais, principalmente a de comunicação diretas por grupos, podem esconder armadilhas (fakes) que para uma parcela significativa da população não é tão clara, e pode influenciá-la diretamente, mesmo que estes tenham o claro interesse de se informar sobre candidatos ou propostas de governo. Aparentemente, antes era mais fácil você escolher onde se informar e se queria se informar, hoje a informação chega de forma tão disfarçada que se pode influenciar os menos interessados pelos rumos políticos, e o pior, eles nem mesmo ficam sabendo que estão sendo "informados"."

Fórum – Os conservadores e reacionários na Espanha, por conta da crescente influência do comunismo e das revoluções que vinham ocorrendo, entraram em pânico e as milícias civis serviram como ferramenta para entornar o caldo e tornar tudo mais cinzento e violento. Em alguma medida isso se repete aqui, com esse crescente avanço de setores não governamentais, agora armados, fomentados por Jair Bolsonaro?

Marcelo Cardoso – "Eu acredito que a pauta seja outra. Não existe um medo de tomada de uma esquerda radical por parte dos membros da direita, pelo menos nos minimamente sensatos. Ocorre, sim, um pânico na medida que eles perdem o protagonismo, como em questões de gênero, ou em um confuso discurso de manutenção de uma família tradicional, que ao certo eles não têm a menor noção do que seja de fato, e por já não existir há muito. Esse protagonismo, como eu disse, não passa necessariamente por uma questão ideológica, mas por um confuso direito de andar armado, negar a ciência ou espalhar notícias sem fundamento nenhum."

"Embora Bolsonaro venha tentando inflamar os grupos que ele considera fiéis, principalmente os grupos armados, que frequentam clubes de tiro e motociatas e tenham atitudes semelhantes aos paramilitares, ao menos na estética, são muito diferentes das Falanges, que eram muito mais disciplinadas e de fato se mobilizavam com uma velocidade e eficiência maior. O discurso por parte dos grupos apoiadores de Bolsonaro é parecido ao dos falangistas, mas aparentemente só nas redes sociais. O fato é que esses grupos se sentem fortalecidos por um discurso dissimulado em tons moralistas e patriótico que busca dar a eles um poder e uma legitimidade que eles não têm, até o momento."

Fórum – Qual o papel das instituições brasileiras no sentido de frear essas ameaças? A situação na Espanha era bem diferente em relação às instituições de Estado àquela época?

Marcelo Cardoso – "Como eu havia falado, esses movimentos não têm força e nem legitimidade, até o momento. Porém, eles vêm ganhando cada vez mais espaço pela não ação das instituições brasileiras, que aparentemente assistem passivamente, talvez de forma intencional, as ameaças veladas ou até mesmo explicitas à Constituição e até mesmo às próprias instituições. Parecendo que a cada ataque do Presidente e dos asseclas ela fica menos capaz de tomar os seus direitos constitucionais e garantir a ordem democrática no país.  A relação das instituições da Espanha pré-Franquista se assemelha ao Brasil devido a fragilidade. As instituições foram atacadas como são hoje, através de um discurso moralista que aponta no sentido da impossibilidade de a democracia oferecer a sociedade ou pessoas de “bem” defesa contra o ataque que elas consideram ameaças ao direito de manutenção dos costumes e ideias como são, ou seja, ignorando o progresso e o direito dos que pensam de forma diferente."

Fórum – Na Espanha, essas hostes reacionárias paramilitares entraram em ação e tiveram papel relevante na sublevação contra o governo republicano. Por aqui, embora existam fatores muito diferentes, é possível que ocorra alguma forma de instabilidade provocada ou alimentada por esses setores armados reacionários protegidos por Jair Bolsonaro?

Marcelo Cardoso – "É muito difícil fazer uma afirmação dessas, pois como todo (ou quase todo) historiador diz, não é possível fazer previsões. Mas ao que parece, o risco sempre existe, posto que esses movimentos insuflados por Bolsonaro quase não sofrem repressões por parte das instituições públicas, como já relatamos, assim podendo se organizar e, como os números vem apontando, se armar livremente. Contudo, parece não haver uma organização de fato destes grupos, o que retira uma chance de mobilização rápida e eficiente, que é necessária e que foi crucial no movimento para conter a esquerda espanhola na Guerra Civil. Isso não diminui o perigo destes grupos, sobretudo diante de uma eventual derrota de Bolsonaro nas urnas, principalmente em face da sórdida campanha dele para desacreditar não só o processo eleitoral, como também desacreditar as instituições eleitorais, podendo sim causar uma tragédia. Isso até se anuncia e se torna cada vez mais real toda vez que ele inflama sua horda e não há uma resposta dos poderes constituídos da República em enquadrá-lo nos limites legais a que todos estão sujeitos, mesmo que o Presidente aja como se ele não estivesse. Por fim, acredito que o clima internacional, principalmente a falta de apoio de outros países, inviabiliza uma quebra de ordem institucional no Brasil. As condições parecem improváveis, só que não são nulas. Mas não podemos confiar em pessoas sem preparo e discernimento diante de uma frustração, eles são capazes de qualquer coisa."