SÉRIE ESPECIAL

O Futuro de Bolsonaro – “A História o verá como do baixo clero. Chegou longe demais”

Na 3ª parte da série que traça o possível destino do radical de extrema-direita ao sair do Planalto, historiadores falam sobre como Bolsonaro entrará nas páginas dos livros de História

Créditos: Agência Brasil
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Na série “O Futuro de Bolsonaro”, a terceira parte da reportagem produzida pela Fórum traz a percepção de historiadores sobre como o atual presidente passará para as páginas dos livros de História, caso ele saia do cargo no fim do ano, após um governo caótico e que mergulhou o país na maior crise socioeconômica de todos os tempos. Nas duas primeiras partes foi abordada a situação do radical de extrema-direita quanto a Justiça brasileira e a Justiça internacional.

Que Jair Bolsonaro é um sujeito megalomaníaco, disso ninguém duvida. No entanto, a forma como o extremista fala de seus “feitos” à frente da nação beira o delírio. Para ele, sua entrada para a História como presidente da República se dará como triunfal, só que essa noção totalmente distorcida e enviesada é bem diferente do que entendem os acadêmicos que estudam o passado do Brasil e como passam para a eternidade as figuras notórias de nossa política.

Para César Agenor Fernandes da Silva, professor da Universidade Estadual do Centro Oeste (UNICENTRO-PR), que é doutor pela UNESP, Bolsonaro entrará para os livros de História como uma figura política inexpressiva, mesmo tendo chegado à Presidência numa conjuntura complexa, e será lembrado pela profunda incompetência e inaptidão para o cargo.

“Bolsonaro entrará para a História como um político do chamado baixo clero que, em um momento de profunda crise política nacional, chegou longe demais, ocupando o cargo político de maior destaque no Brasil. Pouco afeito ao trabalho e à produção legislativa em sua extensa carreira no Congresso Nacional, mostrou igual disposição à frente do Executivo em sua passagem entre os anos de 2019 e 2022. Comandante de um governo sem marca e sem rumo definido, que se inspirou em teorias conspiratórias de um guru astrólogo, superou o recorde que antes pertencia a Juscelino Kubitschek, ostentando o maior número de membros das Forças Armadas em diferentes postos e escalões do poder Executivo. Porém, será inegável dizer que por meio de seus discursos proferidos em transmissões ao vivo por redes sociais ou em trechos de falas reproduzidos em veículos de comunicação de apoiadores como nos canais de YouTube, por exemplo, quase sempre conseguiu pautar as discussões nacionais, inclusive das empresas de comunicação mais tradicionais. Bolsonaro se manteve em evidência, para o bem o para o mal, mantendo o clima de constante campanha política e de mobilização de seus apoiadores mais fanáticos e radicais. Não será esquecida a forma como seu governo lidou com uma das maiores pandemias globais de todos os tempos, na qual a negação da ciência, o charlatanismo, o curandeirismo, como a promoção do kit-Covid, a sabotagem constante das medidas de contenção da disseminação da doença provocada pelo Sars-Cov-2 contribuíram significativamente para o óbito de mais de 660 mil brasileiras e brasileiros. Além disso, Bolsonaro entregou parte significativa do poder decisório de aplicação do orçamento público ao grupo de congressistas que denominamos de centrão, tendo no presidente da Câmara dos Deputados, Artur Lira (PP-AL), uma das mais importantes figuras desse período. Lira, ao mesmo tempo blindava os processos contra os diversos crimes cometidos pelo presidente, abriu caminho para processos corruptos sem igual na História da Nova República, por meio das chamadas emendas de relator, ou “orçamento secreto”, como bem definiram os jornalistas do Estado de S. Paulo em matéria investigativa. A sensação que temos é que estamos diante de um dos piores governos da História republicana do Brasil”, analisou o professor.

Quando o assunto é comparar Jair Bolsonaro com outras figuras funestas e fantasmagóricas da História da América Latina, César diz que essa analogia é possível, em que pese as diferenças existentes entre ele e homens autoritários de outros tempos.

“Sim, nós podemos traçar paralelos entre estas figuras históricas autoritárias de uma forma muito segura. Todos pertenciam aos quadros de alta patente das Forças Armadas nacionais no momento que chegaram ao poder a partir dos anos 70 do século XX,  com exceção do paraguaio Alfredo Stroessner, que tomou o poder ainda em 1954, mesmo ano que o, antes ditador e então presidente, Getúlio Vargas se suicidasse, adiando o golpe de Estado que os militares brasileiros estavam armando. Stroessner foi o mais longevo dos ditadores sul-americanos por sinal (1954-1989), superando o mexicano Porfirio Dias, que ocupou ditatorialmente a cadeira presidencial entre 1884 e 1911. Se percorrermos a história política das repúblicas afro-latino-americanas, perceberemos que os militares tiveram sempre papel de destaque e, junto a ele, colocaram em práticas medidas e políticas autoritárias. Muitos dos chamados libertadores da América eram também militares, assim como muitos homens que ocuparam as cadeiras de presidente em países afro-latinos também eram. Se pensarmos um pouco, tanto a insurreição que levou à Proclamação da República quanto os golpes de Estado de 1930 e 1964 no Brasil contaram com participação direta dos militares, especialmente o primeiro e o último. Porém, guardadas as especificidades de cada um dos governos, exercidos por Pinochet, no Chile, Videla e Massera, na Argentina, e Stroessnner, no Paraguai, percebe-se que existia um alinhamento externo que aceitava e apoiava internacionalmente esse tipo de condução governamental, nos quais as ideias e pessoas divergentes foram censuradas, perseguidos, torturados e mortas por agentes do Estado. Negava-se a possibilidade de exercício efetivo da cidadania e, consequentemente, a vida democrática. Bolsonaro é declaradamente um saudosista desses regimes, inclusive negando a existência de uma ditadura no Brasil e perpetuando o mito de uma suposta ameaça comunista até os nossos dias, glorificando e tentando alterar o passado, com objetivos políticos no presente. O Brasil, diferentemente do Chile, por exemplo, não conseguiu curar a ferida aberta por seu regime ditatorial e, ao não o fazê-lo, permite que arremedos e farsas em torno desta história malfadada (ou mal fardada) queiram se repetir. Bolsonaro, como bradaria o falecido político gaúcho Leonel Brizola é um “filhote da Ditadura”, opinou.

O docente da UNICENTRO-PR pensa que, inevitavelmente, Bolsonaro passará para o todo sempre como outras figuras extremistas de seu tempo, como Donald Trump, Viktor Orbán, Andrzej Duda e Rodrigo Duterte, mesmo tendo realizado um “governo” ainda mais caótico e ineficiente que os dos demais.

“Bolsonaro será colocado no mesmo hall destes políticos, guardadas as devidas especificidades e proporções. Contudo, é interessante observarmos dois fenômenos que podem ajudar a explicar o sucesso eleitoral destes personagens. O primeiro está intimamente ligado ao constante processo de transformações aceleradas da alta modernidade (período histórico que vivemos) que desencadeia uma sensação e efeitos de “crise” constantes. Explicando um pouco mais, são as mudanças socioculturais e das dinâmicas econômicas, irrefreadamente cada vez mais conectadas globalmente, geram uma sensação de insegurança e de ameaça em indivíduos e grupos sociais diversos. Valores tradicionais parecem estar se desfazendo no ar da noite pro dia (o que não necessariamente reflete a realidade, pois muitos desses valores não são praticados efetivamente no dia a dia, só retoricamente), ou mais do que isso, grupos minoritários passaram a ter voz e espaço em sociedades que passaram a se democratizar mais, o que leva ao reacionarismo de setores sociais que foram muito bem captados por essas figuras políticas. Trump queria tornar a América grande novamente, aludindo o retorno a uma época mitificada da história do país, bem como Bolsonaro, que se fia em seu passado de militar e tenta a todo tempo trazer à tona o sentimento de que no período dos governos militares a vida era mais simples, segura e melhor. Esses políticos alegam que vivemos uma decadência moral, uma crise dos valores tradicionais do mundo cristão, e se colocam como os baluartes na luta contra o “globalismo” e os moinhos de vento comunistas. Embora, diga-se de passagem, o moralismo do Bolsonaro soe muito como o do comendador Emanuel (personagem interpretado pelo humorista Costinha no filme “O Libertino”, de 1973, dirigido por Victor Lima). O segundo fenômeno, e o mais evidente, é o fato de que esta trupe (especialmente os grupos de Trump e Bolsonaro) conseguiram compreender as formas como poderiam usar a comunicação digital para construir uma percepção da realidade que os favorecesse. Em outras palavras, foram os que melhor leram a importância e a influência que redes sociais e as tecnologias digitais de informação e comunicação têm no cenário político atual e conseguiram utilizá-las de forma muito efetiva, mesmo que para isso tenham lançado mão intencionalmente das chamadas fake news, ou em bom português, de notícias falsas e mentiras”, comparou o historiador.

Um grande problema, salienta o professor César, é que mesmo com a derrota de Bolsonaro nas urnas e sua saída do Palácio do Planalto, a sociedade brasileira não se verá livre das loucuras e insanidades de seus seguidores mais fanáticos e radicalizados.

“O bolsonarismo, infelizmente, não desaparecerá com uma possível derrota eleitoral do atual presidente. A rede de desinformação, as atitudes reacionárias e o interesse na manutenção e ampliação da influência políticas de parcela minoritária de lideranças religiosas neopentecostais continuarão ativos. A alegação de fraude nas eleições já está sendo feita desde 2018 e se amplificará este ano, independentemente do resultado do pleito, o que gerará tensões, sentimentos de injustiça e aumentará a vazão radical e fanática do bolsonarismo. Uma voz que esteve calada, que mistura sentimentos fidedignos de parcela da população com parca educação, autoritarismo, racismo estrutural e vertentes reacionárias da nossa sociedade não vai querer se calar, pois a ignorância e os idiotas da aldeia, como diria Umberto Eco, foram empoderados. Claro que este poder de mobilização deve se dispersar com o tempo e muitos políticos bolsonaristas de ocasião mudarão de lado de acordo com seus próprios interesses, sobretudo se o governo sucessor conseguir no curto prazo melhorar as condições de vida e econômicas de diferentes camadas da sociedade. A missão é difícil, mas não impossível”, prevê o acadêmico.

Quem também foi ouvido pela reportagem da Fórum foi o historiador Marcelo Cardoso da Silva, professor há mais de 20 anos em cursos preparatórios pré-vestibulares do Estado de São Paulo e formando na Universidade Estadual Paulista (UNESP). Ele diz, em relação à maneira como entende que Bolsonaro passará a ser visto dentro da História assim que deixar o poder, que essa imagem já existe e que gradativamente está “sendo vista” desde agora.

“Podemos dizer que já é visto. No fundo, a figura dele é uma muito clara para se analisar pelo contexto histórico, até porque ele não demonstra uma capacidade de manipular as massas ou os meios de comunicação, levando o seu período no governo através de tentativas de desestabilização. O que modificou do Bolsonaro deputado nanico para o presidente é que ele agora tem poder e consegue se cercar de pseudoapoiadores que se mantêm como uma tropa de choque em busca de algum benefício. As críticas feitas ao governo continuarão, acredito que irão piorar, tendo em vista que em uma eventual derrota, haverá uma reversão nos orçamentos secretos, e sem a interferência na Polícia Federal a modificação na AGU promovidas por ele, ocorrerá uma maior visibilidade sobre o governo, possibilitando um entendimento, de fato, do que por enquanto são evidências, fortes, mas só evidências”, começou dizendo o professor de História.

Cardoso discorda, em vias gerais, do entrevistado anterior no que diz respeito a uma assimilação de imagens entre Bolsonaro e outros déspotas autoritários do continente. Mas ele pensa que isso ocorre pela própria incapacidade total do brasileiro, que seria um completo inepto.

“Difícil responder nestes termos. É claro que Bolsonaro pode ser considerado autoritário, mas nunca como Pinochet, Videla e outros. Veja bem, isso não é um elogio. Na verdade, Bolsonaro não tem condições mínimas de implantar o regime totalitário como os outros, ele não tem a capacidade de ter um projeto. Se tivesse, ele teria feito. O seu totalitarismo se dá de uma forma rocambolesca, buscando apoio dos militares e de setores da sociedade que estão tão perdidos como ele. O fato é que o seu autoritarismo só tem sido possível graças a fragilidade das instituições da República, que sofreram um forte abalo desde o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff e até hoje não conseguiram se recompor. Stroessnner, Pinochet, Videla e Massera foram oportunistas como Bolsonaro, mas tiveram uma linha mestra de ação e capacidade de aglutinar forças aos seus projetos de poder, coisa que Bolsonaro passa longe”, opinou o historiador.

O docente de História contextualizou também que o movimento ao qual Bolsonaro pertence, embora receba seu nome, é um fenômeno anterior ao presidente e que, portanto, é difícil perceber se o extremista brasileiro será colocado numa galeria com outras figuras autoritárias contemporâneas.

“Primeiro é preciso considerar que o bolsonarismo precede Bolsonaro. O seu papel foi aglutinar as forças reacionárias que notaram uma possibilidade de chegar ao poder, não importando quem fosse. Bom exemplo foi a aproximação de Doria, que colou sua imagem na de Bolsonaro. Quem não lembra do Bolsodoria? Isso foram instrumentos de grupos que normalmente não venceriam as eleições presidenciáveis e então se utilizaram de um personagem, se é que podemos dizer assim, que representava uma esperança diante de um caos habilmente construído pelos meios de comunicação. Assim, eu entendo que o legado que ficará não é o do Bolsonaro em si, mas das forças reacionárias que vão esperar uma nova oportunidade para se apossarem do poder, de forma democrática ou não, como já fizeram outras vezes na nossa História”, contemporizou Cardoso.

Perguntado se acredita na manutenção do movimento identificado como bolsonarista mesmo após uma derrota eleitoral, o historiador afirmou que não tem dúvidas disso, já que é do histórico desses grupos se reorganizarem para empreenderem novas tomadas de poder.

“Sim, há gás ainda para que isso continue a existir. Parece claro que quando os progressistas chegam ao poder no Brasil, as forças reacionárias se encolhem para se reagrupar. É possível dizer que em todo o período Republicano essas forças estiveram atentas às possibilidades de retomar o poder, mantendo-se em posições-chaves, e talvez, mais importante ainda, dominando os meios de comunicação de massa, o que os dá muita vantagem na hora de arregimentar aliados e controlar a população”, concluiu o professor.

Um aspecto que procuramos abordar também no que diz respeito à forma como Jair Bolsonaro passará à História é em relação às mulheres, visto que seu governo é abertamente misógino e caricatamente machista. Perguntamos à historiadora e professora Lilian Tavares de Bairros, mestre pela PUC-SP, como seria lembrado o período repressor de Bolsonaro em relação aos seus “feitos” antifeministas.

“O governo Bolsonaro ficará marcado na História das mulheres como retrógrado. Um governo no qual foram roubados nossos direitos conquistados por meio de tantas lutas de todos as ondas feministas. Um ponto que foi extremamente alarmante nesta gestão foi a de dar legitimidade à violência de gênero. Vimos os índices de violência doméstica e violência contra os grupos LBGTQIPA+ aumentar de forma dantesca. Foi um governo que desenterrou os machistas "controlados", aumentando drasticamente o número dos casos de feminicídio no Brasil, além dos casos de estupro e assédio, de todos os tipos. Pela primeira vez na História foi criada por uma leiga jurídica, e machista, uma coisa chamada de “estupro culposo”, naquele conhecido caso de estupro da jovem Mariana Ferrer. Podemos destacar também o retrocesso lançado recentemente na Cartilha Gestante, que aborda a episiotomia (corte na vagina) como um procedimento médico caso haja necessidade, ou seja, validando a violência obstétrica sem ouvir a mulher”, listou Lilian.

A historiadora falou ainda sobre o papel do Ministério da Mulher, nas mãos da ministra Damares Alves durante quase todo o mandato de Bolsonaro. Para ela, além de não realizar absolutamente nada, suas ações ainda destruíram benefícios e programas conquistados anteriormente.

“Ainda gostaria de trazer à memória que a ministra Damares não promoveu nenhuma pauta sobre educação sexual nas escolas, fazendo o caminho reverso com cartilhas impostoras, deturpando todo o trabalho sério de orientação sexual feito por vários educadores. São inúmeros pontos negativos de retrocessos e estagnação no que diz respeito à promoção para igualdade de gênero. É tanta coisa que não terminaria aqui de falar. Isso para não deixar de citar que foi colocado em votação a criminalização do aborto em casos mesmo em casos de estupro, totalmente na contramão do vemos em vários países da América Latina, que vêm até discutindo e legalizando a prática”, acrescentou a docente.

A acadêmica ressalta que o movimento das mulheres contra Jair Bolsonaro antecedeu sua vitória nas urnas em 2018. Para ela, era absolutamente previsível o que ocorreria em caso de sua chegada ao poder.

“Desde a pré-candidatura do atual presidente, um levante virtual feminista articulou-se contra a campanha presidencial de Jair Bolsonaro. O movimento, que ficou conhecido como ‘Ele Não’, engajou mulheres de vários segmentos sociais e políticos com a finalidade de sufocar as falas e atitudes misóginas tão bem conhecidas do atual presidente, então deputado federal. Possivelmente, o ‘Ele Não’ será abordado nos livros didáticos como um movimento político feminista que tentava conscientizar o maior número de mulheres sobre as futuras mazelas machistas que enfrentariam com a posse democrática de um homem como Bolsonaro, a reboque de seus seguidores. O ‘Ele Não’ enfrentou inúmeras fake news com o objetivo de enfraquecer o movimento, como por exemplo as fotos de passeatas feministas antigas de grupos considerados mais radicais”, lembrou.

Por fim, Lilian lembrou uma frase bem conhecida da intelectual feminista francesa Simone de Beauvoir sobre a maneira como agem aqueles que têm o poder, em relação às mulheres, assim que identificam qualquer problema no horizonte.

“Esse governo pode ser entendido facilmente com a citação da Simone de Beauvoir: "Basta uma crise política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados”. De fato, essa frase se encaixa perfeitamente desde o primeiro dia ao governo atual”, concluiu a historiadora.

Leia aqui a 1ª parte da Série "O Futuro de Bolsonaro"

Leia aqui a 2ª parte da Série "O Futuro de Bolsonaro"