ESTADO DE DIREITO SEMPRE

11 de agosto de 2022: ameaças à democracia unem o Brasil em dia histórico

Brasileiras e brasileiros de diferentes segmentos e ideologias se uniram para fazer frente às novas ameaças ao Estado Democrático de Direito encampadas por Jair Bolsonaro

Ato de leitura da carta pela democracia na Faculdade de Direito da USP.Créditos: Elineudo Meira
Escrito en POLÍTICA el

Em 11 de agosto de 1827 foram criados os primeiros cursos de Direito do Brasil. Também em um dia 11 de agosto, do ano de 1992, milhares saíram às ruas em São Paulo em uma passeata que deu início às mobilizações que culminaram no impeachment do ex-presidente Fernando Collor. A data também marca o Dia do Estudante.

Próximo a um dia 11 de agosto, mais precisamente em 8 de agosto de 1977, o jurista Goffredo da Silva Telles Júnior leu a “Carta aos Brasileiros”, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Tratava-se de um manifesto contra a ditadura militar e que marcou um ponto de inflexão na luta contra o autoritarismo dos anos de chumbo.

Não à toa que, diante de novas ameaças à democracia em 2022, encampadas pelo atual presidente Jair Bolsonaro (PL), o dia 11 de agosto foi escolhido para a leitura da “Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito”, elaborada pela Faculdade de Direito da USP.

O documento, que bateu 1 milhão de assinaturas, foi lido na mesma Faculdade de Direito em cerimônia que reuniu uma multidão do lado de fora e, na parte de dentro, juristas, estudantes, sindicalistas, empresários e políticos. Trata-se da mais ampla mobilização contra Bolsonaro desde o início de seu governo, em 2019.

Foto: Emilly Firmino @caaajuina

Apesar de não citar nominalmente o presidente, a carta pela democracia foi elaborada para fazer frente às ameaças do atual mandatário ao sistema eleitoral brasileiro, que colocam em risco a realização das eleições e, por consequência, a soberania da escolha popular. Além da instituição em São Paulo, outras 35 universidades, em todo o país, realizaram atos para a leitura do texto. 

“Ao invés de uma festa cívica, estamos passando por momento de imenso perigo para a normalidade democrática, risco às instituições da República e insinuações de desacato ao resultado das eleições (...) Nossa consciência cívica é muito maior do que imaginam os adversários da democracia. Sabemos deixar ao lado divergências menores em prol de algo muito maior, a defesa da ordem democrática”, diz um trecho do manifesto, que foi lido, no ato da USP, pelas professoras da instituição Eunice Aparecida de Jesus Prudente, Maria Paula Dallari Bucci, Ana Elisa Bechara e pelo advogado e ex-ministro do Superior Tribunal Militar (STM) Flávio Bierrenbach.

Além da carta elaborada pela Faculdade de Direito da USP, foi lido no mesmo evento o manifesto “Em Defesa da Democracia e da Justiça”, organizado pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e que teve adesão de 107 entidades, das patronais aos sindicatos. 

Foto:  @xuniorl

Multidão

O ato de leitura da carta pela democracia foi acompanhado por uma multidão, que lotou a parte de dentro e de fora da Faculdade de Direito da USP. Juristas, estudantes, sindicalistas, empresários, artistas e políticos marcaram presença e alguns deles, antes da divulgação do documento, fizeram discursos em defesa do sistema eleitoral brasileiro e contra as ameaças do presidente Jair Bolsonaro.

Foto:  @xuniorl

A luta contra a ditadura, bem como as vítimas do regime militar foram lembrados. "Nós, da USP, perdemos vidas preciosas durante um período de exceção, as cicatrizes ainda são visíveis, vidas que foram ceifadas pela repressão ou livre pensamento. Nesse período, perdemos 47 pessoas que eram parte de nossa comunidade, nós não esquecemos e não esqueceremos. Aqueles que rejeitam e agridem a democracia não protegem o saber, a ciência, o pensamento e não amam a universidade”, disse o reitor da instituição, Carlos Gilberto Carlotti Júnior.

Representando os artistas, a cantora Daniela Mercury rememorou, ao público na parte de fora, o movimento “Diretas Já!”, que pedia o fim da ditadura militar e eleições diretas.

"O autoritarismo não inclui todos, é quase um reinado, monarquia. Quando falamos isso, as pessoas não entendem. A gente está aqui porque pessoas fizeram aquele movimento das Diretas, conseguimos resgatar nossa democracia. A gente elege nossos representantes. Cada um pensa de uma forma, mas vamos criando formas de resolver as questões coletivas e assim que tem que ser. A gente não precisa concordar com o outro, a gente precisa conseguir encontrar um caminho do meio para fazer políticas públicas importantes, para acabar com as desigualdades, acabar com o racismo, acabar com a LGBTfobia, acabar com a fome”, declarou.

Foto: Elineudo Meira 

Ao final da cerimônia, parte do público externo entoou gritos de apoio ao ex-presidente Lula (PT), que não compareceu para que o evento mantivesse seu caráter pluripartidário. O petista, no entanto, assinou a carta pela democracia, bem como todos os outros principais presidenciáveis, como Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB), e ex-presidentes, como Dilma Rousseff (PT) e Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Bolsonaro, fazendo jus à motivação da mobilização, obviamente, não assinou.

“Defender a democracia é defender o direito a uma alimentação de qualidade, a um bom emprego, salário justo, acesso à saúde e educação. Aquilo que o povo brasileiro deveria ter. Nosso país era soberano e respeitado. Precisamos, juntos, recuperá-lo”, disse Lula enquanto o ato era realizado.

“Ato mais importante dos últimos tempos”

Entre os representantes do Direito presentes na cerimônia histórica, estava o advogado Marco Aurélio Carvalho, coordenador do Grupo Prerrogativas. À Fórum, o jurista avaliou o evento como “o ato mais importante dos últimos tempos”.

“Focado nas convergências, que são óbvias: defesa da democracia, das instituições, do Estado de Direito e do sistema eleitoral vigente, que é referência para o mundo. Até para que a gente possa apresentar nossas divergências é fundamental que a gente vive em um ambiente democrático. E hoje foi um recado muito claro para Bolsonaro, para o bolsonarismo, de que eles não passarão efetivamente. Vamos permanecer em estado constante de alerta contra eventuais ameaças. Estamos nos preparando para reagir à altura e o faremos se necessário”, pontua Carvalho.

Representando os movimentos sociais, Raimundo Bonfim, coordenador da Central de Movimentos Populares (CMP), discursou no ato da Faculdade de Direito da USP. À Fórum, Raimundo também destacou a importância da união dos divergentes em prol da democracia e contra as ameaças ao pleito eleitoral. 

 Foto:  @xuniorl

“É fundamental essa unidade de variados segmentos da sociedade civil, desde empresários, federações patronais, juristas, muita gente da área do Direito, e movimentos populares, com visões antagônicas. Mas diante da ameaça à democracia, diante da ameaça do presidente atual de não respeitar o resultado eleitoral, não respeitar a soberania do voto, é fundamental essa unidade. É um dia que ficará para a história daqueles e daquelas que não aceitam retrocessos do ponto de vista da democracia. Não respeitar o resultado eleitoral é, na verdade, um golpe”, atesta Raimundo.

Bruna Brelaz, presidenta da histórica União Nacional dos Estudantes (UNE), também esteve entre as pessoas que discursaram no evento. À Fórum, a líder estudantil considerou que “este é um grande movimento em defesa da democracia” e relembrou a história de luta dos estudantes no país.

“Temos confiança nessa geração que defende a democracia, a educação, e não compactua com aqueles que flertam com o obscurantismo. Então, o recado de hoje foi dizer que, aqueles que querem e ousam tirar o Estado Democrático de Direito da nossa nação, que flertam com o que há de mais ruim na nossa história, serão jogados na lata do lixo”, sentencia.

João Pedro Stédile, da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), esteve no ato e celebrou o caráter histórico da mobilização.

Foto: Emilly Firmino @caaajuina

“Estamos na construção dessa frente ampla, com representações de toda a sociedade brasileira que defendem a democracia. A democracia passa por trocar o governo, eliminar o neofascismo, mas também, sobretudo, garantir que a classe trabalhadora, o povão, tenham seus direitos que estão na Constituição garantidos. Direito ao trabalho, a renda, a terra, a educação, a saúde. O ato de hoje é apenas a largada para uma grande jornada de atividades”, afirma o dirigente em declaração enviada à Fórum.

Confira trechos de alguns dos discursos feitos no ato de leitura da carta em defesa da democracia

Beatriz Lourenço do Nascimento, da Coalizão Negra por Direitos

"Nós não andamos sós. Enquanto houver racismo, não haverá democracia. Viemos a público exigir a erradicação do racismo como prática genocida da população negra. O Brasil é um país em dívida com a população negra. Dívidas históricas e atuais. Convocamos os setores democráticos da sociedade brasileira, as instituições e pessoas que hoje demonstram comoção com as mazelas do racismo e se afirmam antirracistas: sejam coerentes, pratiquem o que discursam, unam-se a nós.Esta convocação é ainda mais urgente durante uma pandemia de Covid-19, quando sabemos que a população negra foi o segmento mais adoeceu e morreu. Em meio à pandemia de Covid-19, o debate racial foi ignorado. Neste momento em que diferentes setores se unem em defesa da democracia contra o fascismo, o autoritarismo, pelo fim deste governo, é de suma importância considerar o racismo como assunto central. Estamos vindo a público para denunciar as péssimas condições de vida da população negra."

José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça

“Depois de ter vivido os anos mais lindos da minha vida nesta casa ter participado de movimentos marcantes na história do Brasil, uma delas foi quando idealizamos a carta aos brasileiros. Hoje é um outro momento, um momento grandioso, eu diria talvez inédito, em que capital e trabalho se juntam em defesa da democracia. Eu acho que nós estamos celebrando aqui, com alegria, com entusiasmo, com esperança com certeza, nós estamos celebrando o hino da democracia.”

Patricia Vanzolini, presidente da OAB-SP

"Democracia é procedimento, é prática. Assim como a felicidade exige cuidado, vigilância e que de quando em quando nos unamos para lembrar que fora da democracia não há meios para que sociedade heterogênea possa se desenvolver. Precisamos defender a democracia e sempre."

Celso Campilongo, diretor da Faculdade de Direito da USP

"Este ato e tudo que nós faremos na faculdade hoje é um ato de tranquilidade, é um ato de serenidade e ao mesmo tempo uma festa. Uma festa pela democracia. Vamos diretamente àquilo que é essencial, diria o professor Gofredo. Aqui nós temos a reunião de sindicalistas, de empresários e de movimentos sociais da sociedade civil. Isso mostra que as eleições já têm um vencedor, este vencedor é o sistema eleitoral brasileiro. Este vencedor é o a legalidade do estado democrático de direito sempre. Principalmente, o mais importante, o vencedor das eleições é o povo brasileiro."

Telma Victor, presidenta da Central Única dos Trabalhadores em São Paulo (CUT-SP)

“Estamos unificados nesse momento histórico para o nosso país, em nome da democracia, para que ela prevaleça. Juntamos todos e todas aqui nesse espaço que, para além da democracia, é um espaço histórico de grandes transformações e oportunidades para o nosso país”

Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central

"Nós não temos um caminho, que não o da liberdade, da democracia e da Justiça. É por isso que estamos aqui. Toda a nossa coragem tem que ficar concentrada em salvar o que foi conquistado, que é a base do nosso futuro”

Oscar Vilhena Vieira, membro da Comissão Arns

“Este não é um manifesto partidário, mas é um momento solene no qual as principais entidades da sociedade civil brasileira vêm celebrar o compromisso maior com a democracia”

Manuela de Morais, presidenta do Centro Acadêmico XI de agosto

"Hoje surge como tarefa democrática a união de diversos setores da sociedade para defender as liberdades e os direitos pelos quais uma geração inteira de lutadores deu a vida para conquistar. É por esta razão que nos congregamos hoje. Nós, que éramos os outros, agora fazemos parte dessa nova carta. Somos jovens, negros, periféricos: uma nova intelectualidade que é fruto da escola pública, das quebradas e das favelas.”