Com capitã cloroquina, negacionistas ganham voz e CPI da Covid vira palco para desinformação

Mayra Pinheiro e senador Marcos Rogério fizeram dobradinha para defender o medicamento sem eficácia

Foto: Agência Senado
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Em seu depoimento na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19, no Senado, nesta terça-feira (25), a secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde Mayra Pinheiro, conhecida como “capitã cloroquina”, reforçou teses defendidas pelo presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores. Ela defendeu o uso de medicamentos que não têm eficácia comprovada e se posicionou contra o lockdown, medida adotada em diversos países para o combate ao coronavírus.

Não é difícil imaginar que trechos de suas falas logo estarão circulando em grupos de WhatsApp gerando desinformação. O resultado é uma população confusa num momento em que especialistas já alertam a preocupação com uma terceira onda da pandemia no país. A cepa indiana já chegou ao Brasil e há cidades com altas taxas de ocupação em UTI’s. Curitiba, por exemplo, chegou a 100% nos leitos de enfermaria para Covid. No estado de São Paulo, a ocupação de UTI voltou a ficar acima de 80%. E nesta segunda-feira (25), o país alcançou a marca de 450 mil mortos pela doença, o segundo no mundo em número de óbitos, atrás apenas dos Estados Unidos.

Mesmo diante desse quadro, a médica Mayra Pinheiro defendeu o uso da cloroquina no estágio inicial da doença. “A humanidade teve um grande prejuízo de pessoas que poderiam não ter sido hospitalizadas e não terem ido a óbito se a gente não tivesse criminalizado duas medicações antigas, seguras e baratas”, disse a médica Mayra, pediatra, que nunca participou de qualquer estudo de infectologia, como afirmou à CPI. Para ela, há uma perseguição aos médicos que receitam esses medicamentos. Incrível como em nenhum lugar do mundo a cloroquina salvou tantas vidas, será que foi uma perseguição mundial? Afinal, hoje já são 3,5 milhões de mortes no mundo segundo o Worldometers.

“Narrativa homicida, não tome remédio que não tenha prescrição na bula para Covid-19, vai tomar o quê?”, chegou a questionar o senador bolsonarista Marcos Rogério (DEM-RO), esquecendo que existe vacina contra o coronavírus. Vacina, que foi negligenciada pelo governo Bolsonaro. Enquanto o presidente fazia campanha contra imunizantes e o isolamento social, o Ministério da Saúde deixou a Pfizer sem respostas. O Brasil poderia ter recebido 1,5 milhão de doses da vacina em dezembro do ano passado. Quantas vidas foram perdidas?

O senador Marcos Rogério, que na semana passada, durante o depoimento do ex-ministro Eduardo Pazuello, apresentou vídeos do início da pandemia, quando havia estudos em andamento sobre a cloroquina, como se fossem de agora, voltou a dizer que estados de Alagoas, Bahia e São Paulo adotariam o tratamento precoce. No entanto, o senador cita orientações de que o paciente deve procurar atendimento para iniciar o tratamento, como se fosse o uso de cloroquina.

O senador ignora todas as evidências e traz informações de protocolos do início da pandemia para reforçar sua defesa do governo Bolsonaro. Em julho de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) interrompeu todos os estudos com cloroquina porque concluiu que o medicamento "produz pouca ou nenhuma redução na mortalidade de pacientes com covid-19 hospitalizados, quando comparados ao padrão de atendimento".

Para o jornalista Kennedy Alencar, “a CPI hoje virou palco para desinformação assassina. São criminosas a intervenção do senador Marcos Rogério e a resposta da Capitã Cloroquina”.

Para o médico infectologista e pesquisador Daniel Dourado, “Mayra Pinheiro acaba de defender cloroquina como tratamento precoce contra Covid e a imunidade de rebanho por contágio. E se manifesta contra lockdown. Está se entregando. É a primeira que está bancando o discurso negacionista abertamente na CPI”.

“Um em cada quatro brasileiros tomou kit covid. Se vivêssemos no mundo de faz de conta onde isso funciona contra a Covid, não seríamos o 2º país em mortes registradas no mundo. Ou o 10º em mortes proporcionais”, afirmou o biólogo Atila Iamarino.

O médico e senador Otto Alencar (PSD-BA) também rebateu a médica Mayra Pinheiro, que disse que a hidroxicloroquina tem ação antiviral comprovada desde 2005. “Corrija isso. A hidroxicloroquina é antiparasitário, antiprotozoário, não tem estudo nenhum, a não ser estudo que não tem comprovação pré-clínico e clínico para dizer uma bobagem dessa”.

“Imunidade de rebanho e lockdown”

No começo da sessão, o senador Renan Calheiros apresentou um vídeo de Mayra, de março de 2020, onde ela defendia que só idosos ficassem em casa e criticava “legisladores em um estado de exceção, que criavam pânico na população”, em referência às medidas de distanciamento social. Segundo ela, o lockdown atrapalharia a obtenção da imunidade coletiva, já que a contaminação em massa criaria a tal “imunidade de rebanho”.

Na CPI, Mayra afirmou que se referia apenas às crianças. E se colocou contra a suspensão das aulas. Questionada pela senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), sobre toda a equipe escolar em risco e que as crianças vão voltar para casa, disse que “o lockdown foi adotado de forma inadequada” e que só seria efetivo para fome e miséria, citando a OMS.  

Estudos recentes comprovam a efetividade da medida de isolamento que foi responsável por salvar vidas. Um deles (Hsiang et al), publicado na revista científica Nature, analisou o lockdown em 1,7 mil locais da Ásia, Europa e EUA. “Descobrimos que as políticas anti-contágio reduziram significativa e substancialmente esse crescimento. Algumas políticas têm efeitos diferentes em diferentes populações, mas obtemos evidências consistentes de que os pacotes de políticas que foram implantados para reduzir a taxa de transmissão alcançaram resultados de saúde amplos, benéficos e mensuráveis. Estimamos que, nesses 6 países, as intervenções preveniram ou atrasaram na ordem de 61 milhões de casos confirmados, correspondendo a uma redução de aproximadamente 495 milhões de infecções totais”, dizem os autores.  

A fala atribuída à OMS de que David Nabarro, enviado especial da OMS, teria dito que “lockdown não salva vidas e faz os pobres muito mais pobres”, na verdade foi retirada de contexto para gerar desinformação de que a organização seria contra o isolamento. Foi dita pelo presidente Jair Bolsonaro durante uma live e agora pela médica.

Equipe de checagem do Senado, criada pelo relator Renan Calheiros, elencou 11 mentiras da “capitã cloroquina”. Infelizmente elas já devem estar editadas em vídeos nos celulares pelo país, de pessoas que não acreditam mais na imprensa e acham que as mortes são exageradas e não subnotificadas. Resta saber quem irá convencer essa parcela da população do contrário.