Vitalina Varela: as condições do espaço, por Cesar Castanha

No blog Milos Morpha: O rastro estético e político inconfundível do português Pedro Costa

Foto: Divulgação
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Há alguns anos tenho sido mobilizado pela questão de como o lugar aparece em cena no cinema. É evidente que essa aparição do lugar (qualquer lugar que seja no cinema, do interior de um estúdio a uma locação periférica) é sempre constituída por um regime estético: dinâmicas de luz, enquadramento, cenografia, interações gestuais dos que habitam esse lugar, etc. E, constituído como é por um regime estético, o aparecimento do lugar é também, sempre, determinado politicamente.

Esse reconhecimento comum de uma estética e de uma política não é estranho às discussões sobre o cinema de Pedro Costa. Pelo contrário, os filmes dele aparecem frequentemente como uma base para esse reconhecimento. No quarto de Vanda (2000), por exemplo, é central para o desenvolvimento do filósofo Jacques Rancière acerca de uma ação política que se dá por meio do gesto estético, da reconfiguração da sensibilidade por meio da transformação de um espaço-comum. De outra maneira, no ótimo texto de Juliano Gomes e Victor Guimarães sobre o seu filme mais recente, Vitalina Varela, é dito como os filmes de Costa “inventam a recepção” na criação de uma linguagem.

Esses são só dois momentos da escrita sobre Costa que localizam sua obra não como objeto de uma análise estética, mas como relevante agente no modo como somos informados sobre o que a estética é. O momento em que eu melhor experienciei isso no trabalho de Costa foi na exposição Pedro Costa: Companhia, no Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves, na cidade de Porto. Foi muito comovente me envolver ali com o audiovisual como mediação de uma outra experiência espacial, uma espacialidade audiovisual. Os ambientes da exposição enfatizavam paisagens, rostos e fragmentos de interiores fílmicos, levando-nos – como transeuntes – a incorporar, no nosso movimento, o audiovisual como arquitetura, como espacialidade definida em dinâmicas coreográficas de aproximação e distância, definidas em termos de ponto de vista e de hapticidade.

Tenho apenas uma vaga lembrança da exposição quando vou assistir Vitalina Varela, mas o filme termina por me conduzir a um entendimento semelhante. Ele se situa dentro do universo, que reaparece na filmografia de Costa, dos imigrantes caboverdianos em Portugal. A personagem do título, no entanto, ainda está para chegar. É importante essa compreensão de que aqueles espaços a recebem, no sentido de que eles se constituem sem a sua participação, bem antes de sua chegada. Vitalina Varela chega porque seu marido, que ali vive há 30 anos, morreu. Ela chega depois do enterro, mas diz que não vai embora, promete que morrerá ali, em um espaço em que não reconhece o seu marido, mas em que, ainda assim, o reencontra.

Esse lugar a que Vitalina chega, e em que nós, como espectadores, estamos inseridos desde antes de sua chegada, é escuro e restrito, fracamente iluminado por uma luz que vem de fora (da janela ou acima e além dos muros e paredes), mas esse fora, esse espaço além do quadro, nunca é localizado. Os espaços que os personagens habitam é aquele, estritamente, do quadro fílmico. É esse quadro que delimita tanto os movimentos quanto as condições de aparecimento (e, por isso, as condições de existência) desses personagens. Ao mesmo tempo, são as coreografias e os gestos dos personagens que delimitam as condições de aparecimento e existência desse espaço, materializado como quadro fílmico. Uma afirmação não é contradição nem contrapartida da outra: o cinema de Costa é amplamente reconhecido como um cinema de construção dos espaços-comuns, condicionados não apenas por quem filma (nessa posição de diretor-autor), mas pelos sujeitos filmados, que criam também as suas condições de aparição.

Para exemplificar a partir de um momento em que isso foi, pra mim, muito presente, penso na postura de Vitalina Varela no plano de onde foi tirada a principal imagem de divulgação do filme. Vitalina está sentada na cama, seu torso está inclinado diagonalmente para a frente e para a esquerda, mas seus braços, que impulsionam esse gesto do torso, estão para trás, à direita, tocando a cama. A sua cabeça, porém, não está inclinada, dirige-se firmemente para a frente, e seu rosto está franzido também para a frente. Vitalina sustenta, com essa postura, um monólogo para o marido falecido. Não se trata de fazer uma leitura psicologizante do gesto da atriz-personagem – de dizer, por exemplo, o que significa o seu corpo se erguer para frente e se segurar para trás –, mas de entender como a ação dela define os parâmetros da forma fílmica, inclusive da constituição do plano, definido por essa postura firmemente estática, mas em permanente ação.

É lamentável, enfim, que Vitalina Varela, como filme e trabalho artístico performático e espacial, tenha coincidido com uma situação de precariedade e de novas limitações em que se encontram as salas de cinema em diversos países e no Brasil, onde o filme estava previsto para estrear em 2020, pela Zeta Filmes. Muito tem se falado, neste momento, sobre os filmes que, em um ano quase totalmente restrito ao streaming, gritam pela sala de cinema. Mas nenhum grita tão alto quanto este filme e os seus sussurros. Espero, em 2021, ter a oportunidade de revisitar Vitalina Varela nesse outro espaço e refazer, nessa nova arquitetura, o percurso pelo filme, transitando mais uma vez pelas dinâmicas de sensibilidade e ponto de vista, de aproximação e distância, que constituem a sua estética e a sua política.

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