LUTO E LUTA

Há 35 anos, Chico Mendes segue sendo assassinado diariamente pelo agronegócio

Resex fruto da luta do histórico ambientalista é, pelo sexto ano seguido, a área protegida mais ameaçada na Amazônia; Entenda como Bolsonaro promoveu avanço do gado sobre as comunidades e disparou índices de desmatamento

Chico Mendes trabalhando como seringueiro.Créditos: Reprodução
Escrito en MEIO AMBIENTE el

Francisco Alves Mendes Filho, o eterno Chico Mendes, dispensa apresentações. Nascido em 1944 no seringal Porto Rico, no Acre, deu início a sua atividade sindical em 1975, liderando os chamados ‘empates’, que eram manifestações de seringueiros que ocupavam a floresta para impedir a derrubada de árvores.

Trabalhou como seringueiro desde os 11 anos de idade, de forma que abdicou da escolaridade em decorrência da necessidade de trabalhar. Ele foi alfabetizado apenas aos 16 anos por um homem que considerou ser seu mestre, Fernando Euclides Távora – militante comunista que participou da Intentona Comunista de 1935 e da Revolução Bolivariana de 1952. Com Távora, Mendes passou a destacar o sentido político da educação, que o levou a se interessar pelo futuro do planeta e da humanidade.

Em 1975, como militante das comunidades eclesiais de base (CEBs), fundou o primeiro sindicato de trabalhadores rurais do Acre, no qual era secretário-geral, em Brasileia. Em março de 1976, organizou junto do sindicato o primeiro empate, no Seringal Carmen.

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Chico Mendes foi um verdadeiro gigante e adiantou, décadas atrás, na sua própria prática cotidiana, o que viria a ser atualmente chamado como ecossocialismo. Chico foi a primeira pessoa a falar abertamente que o verdadeiro progresso consistia em manter a floresta em pé.

“Os seringueiros, os índios e os ribeirinhos há mais de 100 anos ocupam a floresta. Nunca a ameaçaram. Quem a ameaça são os projetos agropecuários, as grandes madeireiras e as hidrelétricas com suas inundações criminosas”, disse Chico.

Chico Mendes diante do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri (Acre). Créditos: Reprodução.

A tática dos seringueiros foi o principal mecanismo de resistência contra o desmatamento na Amazônia e a exploração de trabalhadores. O empate ganhou repercussão midiática após o assassinato de Wilson Pinheiro, presidente do sindicato que foi morto a mando de latifundiários na região devido à sua liderança na luta contra jagunços que ameaçavam os posseiros e a integridade da floresta, em 1980.

Chico continuaria promovendo empates e ações de alfabetização e educação política da população seringueira - que habita a região desde o primeiro ciclo da borracha (1877-1910). Sua militância tornou-se famosa em todo o planeta e ele foi uma das peças cruciais para os seringueiros manterem sua reprodução social e econômica após um longo período de disputas com fazendeiros.

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Acabou sendo assassinado dentro da sua casa em Xapuri há exatos 35 anos, em 22 de dezembro de 1988, por Darci Alves, filho do fazendeiro Darly Alves, mandante do crime. O latifundiário era ligado à União Democrática Ruralista (UDR). Em 1990, ambos foram julgados e condenados a 19 anos de prisão. Eles fugiram em 1993, foram recapturados três anos depois e conquistaram liberdade condicional em 1999.

Apenas dois anos após a sua morte, foi criada a Reserva Extrativista Chico Mendes (Resex Chico Mendes), em sua homenagem, em 1990, com mais de 970 mil hectares, interligando os municípios de Brasiléia e Xapuri, no Acre. Mas é justamente através da Resex que Chico Mendes continua sendo assassinado diariamente pelo agronegócio, 35 anos após sua partida.

Resex Chico Mendes é a área protegida mais ameaçada pelo 6º ano consecutivo

Entre agosto de 2022 e julho de 2023, a Resex Chico Mendes foi a área de consevação mais pressionada pelo desmatamento decorrente da expansão das fronteiras do agronegócio e de atividades depredadoras no país. A afirmação está embazada pelos dados são do estudo trimestral “Ameaça e Pressão de Desmatamento de Áreas Protegidas”, feito desde 2016 pelo Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia).

A metodologia do estudo analisa ocorrências de derrubada da floresta e não necessariamente o total de área desmatada. O objetivo da pesquisa é indicar territórios que estão em risco.

No caso da Resex Chico Mendes, ela figura como a área de proteção mais ameaçada por 6 anos consecutivos e já apresenta índices de desmatamento absurdos desde 2019, no primeiro ano do Governo Bolsonaro, quando a boiada de Ricardo Salles passou pelo Acre e promoveu não apenas a invasão do agronegócio na região, como um programa que financiava a atividade e, lateralmente, através dos incentivos buscava transformar os seringueiros – que se dedicam a atividade sustentável – em criadores de gado que invariavelmente teriam de derrubar a floresta.

Boom de desmatamento em 2019

Isso se expressou em números. O desmatamento da Resex Chico Mendes que fechou os cinco anos anteriores (2014-2018) abaixo dos 30 km2 desmatados, viu o índice disparar em 2019 para quase 80 km2. Em 2020 baixou para 60 km2 e em 2021 atingiu o seu recorde, superando os 83 km2 de desmatamento. Até setembro de 2022, dos 140 km2 desmatados da floresta amazônica no Acre naquele ano, 18% estavam dentro da Resex.

A boiada de Bolsonaro e Ricardo Salles

Em março de 2019, em reportagem de fôlego que descreveu o quadro, a National Geographic foi ao local e denominou a Resex Chico Mendes como “um retrato da destruição da Amazônia”.

Diz a reportagem: “A pouca competitividade da economia extrativista e a perda da identidade dos moradores com o movimento histórico que levaram à criação da área protegida têm motivado as famílias a trocar a seringa pela criação de boi como atividade principal. A coleta da castanha e a extração do látex, cuja luta custou a vida de Chico Mendes, são agora apenas uma complementação de renda. Poucos são os que persistem no extrativismo como referência para fonte de sustento”.

A revista de origem nos EUA fala sobre a chegada de novos moradores na Resex e aponta que, embora ilegal, o comércio de terras dentro da Resex estava a todo vapor. O casal Gilson Barbosa e Elizabeth da Cunha tinha chegado do município de Machadinho, em Rondônia, e disse ter pago 180 mil reais por 100 hectares, mas que não sabiam se tratar de uma área protegida.

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“O pessoal do ICMBio disse que não poderíamos ficar aqui porque não temos o perfil para estar numa reserva extrativista. Disseram que só ia morar aqui quem voltasse aos tempos antigos e vivesse só da borracha”, diz da Cunha. “Quero saber, quem aqui vive só de cortar seringa? Se assim fosse estaria todo mundo na miséria,” completou. A venda de terras em unidades de conservação estava então sendo investigada pelo MPF.

A nova onda de moradores alterou a correlação de forças da sociedade local. No fim de 2019, o Mongabay publicava uma reportagem apontando que alguns desses fazendeiros e ocupantes irregulares alcançaram poder político e pressionavam pela redução dos limites da Resex, com vistas a criação de gado. A matéria também lembrava que esse era exatamente o modelo do conflito na região durante a ditadura militar, nos anos 70 e 80, do qual os seringueiros saíram vencedores às custas da vida de Chico Mendes e outras lideranças.

Nesse contexto, a deputada federal Mara Rocha (PSDC-AC) – que também é irmã do então governador do Acre, Wherles Rocha (PSL-AC) – alegou que na época da criação da Resex Chico Mendes já havia criadores de gado na região e, representando os novos moradores, fez lobby em favor do PL 6024/19 que afrouxava o status de preservação de uma série de áreas protegidas no Acre, entre elas a Resex CM. Ainda diminuiria seu tamanho.

Já em 2020, dias antes de ser decretada a pandemia de coronavírus, o Esquerda Diário publicou: “A política de desmatamento de Bolsonaro e a Resex Chico Mendes”. A matéria alertava sobre os números do desmatamento na reserva, que após a alta de 203% no primeiro ano do Governo Bolsonaro, já havia perdido, naquela data, 7,5% da sua área florestal. A matéria também chamava atenção ao fomento do Governo Bolsonaro à pecuária na região que se dava por meio do não incentivo à atividade seringueira, enquanto seu inominável ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, comparava a categoria a “cobaias humanas” e se reunia com fazendeiros para atender seus interesses.

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Meses antes, no seu primeiro de dia de mandato, Bolsonato retirou da Funai atribuição de demarcar terras indígenas, dando-a ao Ministério da Agricultura que à época tinha à cabeça o líder ruralista Luiz Antônio Nabhan Garcia. Ao mesmo tempo, também retirava demarcação de terras quilombolas do Incra e o Serviço Florestaldo Ministério. do Meio Ambiente.

Essa foi a grande desregulamentação ambiental de Bolsonaro, que seguiu sendo aprofundada ao longo do seu mandato e desembocou em uma série de tragédias. Elencamos algumas: queimadas recordes no Pantanal, queimadas recordes no Cerrado e, em termos midiáticos internacionais, os assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips, no Vale do Javari. No final daquele ano, em 4 de dezembro de 2019, a Folha publicaria uma reportagem com o seguinte título: “Após se reunir com infratores ambientais, Salles suspende fiscalização da Resex Chico Mendes”. A notícia é ilustrativa.

Estavam na reunião com o então Ministro do Meio Ambiente, em Brasília, Gutierri da Silva, condenado pela Justiça Federal por desmatar a Resex CM; Gessi Capelão (MDB), vereador em Xapuri que defende a expansão do agronegócio para dentro do território; Fátima Sarkis, que tinha à época um haras dentro da Resex; a então deputada federal Mara Rocha; Jorgenei Ribeiro, ex-procurador do Acre que chegou a ser autuado pelo ICM-Bio por abrir estrada ilegal na Resex; Uenderson de Brito, ‘dono’ de 400 hectares dentro da Resex onde criava gado à época; Rodrigo Oliveira Santos, famoso desmatador da região; os deputados federais Vanda Milani (SD-AC), Jesus Sergio (PDT-AC), Alan Rick (Dem-AC) e o senador Sérgio Petecão (PSD-AC).

Com Ricardo Salles mediando a conversa, os delinquentes ambientais reclamavam da truculência da fiscalização do ICM-Bio na região. Obviamente, como o título da matéria já mostrou, Salles então suspendeu a fiscalização do órgão público. Outro dado é a violência na região, decorrente das disputas por territórios advindas da expansão das fronteiras do agronegócio, que voltou a aumentar ali.

Agronegócio coopta comunidades

Mas como dito, não houve apenas uma invasão do agronegócio. Também foi registrada uma forte cooptação das comunidades seringueiras. Em 25 de setembro de 2020 o portal Infoamazonia.org publicou matéria de denúncia na qual os herdeiros da luta dos seringueiros relatavam a falta de estrutura e o desmonte de uma das primeiras e mais simbólicas reservas extrativistas do país.

No texto, o jovem Rian, oriundo de uma família de seringueiros que sobreviveu aos conflitos nos anos 80 e 90 e que é referência local na atividade de extração de látex, conta como muitas famílias da reserva começaram a se interessar pela pecuária. “Algumas famílias preferiram investir apenas na pecuária como forma de obter lucro fácil, só que isso tem um custo para a natureza, como as queimadas e os desmatamentos”. Para ele, fica claro que essas pessoas enveredaram por este caminho, de alguma maneira seduzidas pelos padrões de vida das grandes cidades e dos barões do agronegócio.

Matéria da Folha que já analisava esse quadro um ano antes apontava a estimativa de 30 mil cabeças de gado na Resex Chico Mendes. No texto, o ambientalista Alberto Tavares, que à época era diretor-presidente da Companhia de Serviços Ambientais do Acre, tentava analisar a situação. "O Brasil virou uma potência mundial do agronegócio. O boi é pop. Mas o Acre cresceu com base na economia verde. Só que as pessoas não acreditam."

Na mesma matéria, a falta de memória ou de conhecimento sobre a história de Chico Mendes também foi apontada, por ninguém menos que sua filha Angela Mendes, como motivo para a perda do desejo de permanecer na floresta: "Infelizmente, a população parece que não se sente parte. Parece que não aconteceu em Xapuri".

*Com colaboração de Túlio Gonzaga.